Sentou-se na cadeira onde se deixava descansar
todos os dias, enquanto sentia uma ansiedade desmesurada na barriga. Passava os
dias assim e as noites não eram muito diferentes. Costuma dizer para si
próprio: Porra, isto não são borboletas no estômago, são abelhas. O problema é
que ele nunca entendeu o porquê de se ferroar a si próprio incontrolavelmente.
Nos anos de miúdo, a época de meio miúdo, meio adulto, e mesmo agora chegando a
homem, a incompreensão era-lhe instalada no sangue a cada beliscão interior,
como um comboio pontual a apitar por dentro. No entanto, esta noite era
diferente - como seria de esperar do fim do dia em que se tira a vida a alguém
pela primeira vez. Naquela noite a música estava calada, nenhum livro fora da
prateleira, apenas o seu ser desarrumado, e os ouvidos embalados pelas gotas de
sangue que caíam cadenciadas no chão do quarto, saídas daquele pau arrancado à
pressa para fechar os olhos ao tipo que tinha ficado estendido no chão, fora de
tudo. Inevitável, pensou. Cada um tem o que merece, mesmo que não se saiba
muito bem quem decide o que se merece, e quem é digno de quê. Já era de manhã
quando a garrafa de Jameson e os cigarros acabaram. Reviu, releu e pensou tudo
o que tinha acontecido horas antes. Apenas há 2 meses na cidade, ainda tinha
por hábito conhecer ruas novas, bares novos, descobrir onde paravam as melhores
putas e se vendia a melhor erva. Na altura, pelo que se lembra, já que os raios
da manhã teimavam em queimar a linha lógica das ações projetadas na testa,
estava a dobrar a esquina do antigo cinema. Achou piada ao cinema, que tinha em
exibição Leon, o Profissional, do
Besson. Ia entrar para ver o filme, até ser abordado pelo agora falecido.
"Passa para cá a carteira se não queres que te esventre com esta navalha,
caralho". O ladrão não era muito maior que ele e lutaram, até ao impagável
momento em que olhou o chão e viu o pau. O passo a seguir foi rápido no
passado, mas era agora lento na sua ideia. Via tudo em alta definição, a
madeira seca a atingir o ladrão pelo maxilar. O sangue. O gajo no chão.
Encostou o ouvido ao peito do desgraçado: nada. Estava morto. Fugiu. Foi esta
espécie de filme macabro que viu no escuro a noite toda. Tentou abstrair-se da
situação e a ideia que o absorveu foi a ausência infantil de ação por parte das
pessoas que estavam naquela rua, naquela hora. Tinham partilhado com ele aquele
momento e eram seus cúmplices. Mas aqui a palavra cúmplice adquire um
significado estranhamente amplo. Pensou, estava o velhote da bilheteira do
cinema, a senhora a fechar o quiosque de livros antigos e tabaco, um casal de
namorados a sair do museu de arte e a peça mais intricada do puzzle: a rapariga
de casaco preto e calções de ganga, uma vestimenta neutral dada a meteorologia
mediana e insonsa, que fumava um cigarro com um pé encostado numa das paredes
do cinema. As pernas foram a primeira coisa em que reparou, como eram bonitas e
como ele gostava de pernas. Numa ocasião normal teria chegado a casa, bebido
dois ou três copos e ia para a cama masturbar-se imaginando tudo o que poderia
fazer com aquele corpo. Estava novamente perdido na imagem da rapariga quando
se lembrou da conclusão a que estava a chegar: cúmplices. Ninguém mexeu um dedo
quando repararam que ele estava a ser assaltado, atitude coletiva que não mudou
quando o assaltante jazia estendido, lívido, sem respiração, com a cabeça a
mijar sangue devagarinho para a sarjeta da esquina da rua do cinema com a
avenida principal. Ao fim de uma hora de luz desistiu involuntariamente, mas
todas as suas reservas estavam esgotadas, mentais e físicas. Dormiu até tarde e
não sonhou com nada. Quando voltou a abrir os olhos sentiu a ignorância e
rabugice do despertar, o que lhe trouxe felicidade durante os vinte segundos
que essa sensação durou. Rapidamente voltou à realidade e, sóbrio e com a
cabeça menos fervilhante, foi assolado por todos os possíveis problemas em que
ainda não tinha pensado. Não que fossem rebuscados, eram até os mais simples.
Matei, polícia, preso. Estas três palavras eram pequenos barquinhos de papel na
corrente de incoerência que ainda toldava o seu raciocínio. Matei, polícia,
preso, matei, polícia, preso, matei, polícia, preso. Por mais que tentasse
formar uma pequena frase, estas três pequenas palavras voavam livremente no
crânio. Como borboletas. Como o seu estômago. Tinha a boca seca e sentia fraqueza
de fome. Sentou-se e ligou a pequena televisão, comprada em segunda mão, que
tinha numa pequena mesa de fabrico escandinavo (que custam poucas notas), em
forma de paralelepípedo mas oco, com aberturas de lado, onde tinha entulhado um
monte de revistas e livros, ao acaso. Tinha a boca seca e voltou a beber água.
Não conseguia olhar diretamente para as notícias, não conseguia comer, só beber
água. A boca secava-se ainda mais no espaço torturador entre cada notícia.
Tinha a certeza que a notícia iria surgir. “HOMEM MORTO VIOLENTAMENTE EM FRENTE
AO ANTIGO CINEMA. TESTEMUNHAS IDENTIFICAM X COMO O AUTOR DO CRIME”. Fumou um
cigarro e só aí conseguiu estabelecer uma linha comunicacional dentro de si
próprio, mesmo que irrelevante para o caso. “Foda-se, foste esperto em ter
comprado 10 maços de cigarros”. Sorriu. Era do seu apanágio elogiar-se a si
mesmo por estes pequenos momentos de génio, para a seguir ficar envergonhado
por o ter feito. Achava-se fraco e patético, com necessidade de se bajular
durante um par de segundos para depois cair em si, e na triste figura que
teimava em fazer perante si próprio. Três segundos. O sorriso desapareceu.
Estranhamente o dia desenrolou-se sem ser noticiado o assassinato que tinha
cometido. Intrigou-o mais do que lhe deu descanso, o facto de não ter sido
aproveitada por um qualquer meio de comunicação, uma história tão boa como um zé-ninguém
morto a paulada numa esquina. Teria que aparecer em algum lado, eventualmente.
Numa altura em que tinha já abertos todos os sites noticiosos de que se lembrou, combinou uma coisa com ele próprio:
se ao fim de dois dias ninguém o viesse prender, ou se nenhuma notícia
aparecesse, aí sim sairia novamente à rua. Era já fim de tarde de quarta-feira
e sairia sábado, se nada acontecesse. Deu por si numa nova encruzilhada. Sabia
que não queria ser apanhado, mas também não queria sair à rua. Dado que os seus
graus de satisfação e ansiedade não viviam a modos de nenhum fiel que os
equilibrasse, o tombo do desespero levou-o a sentir-se em apoteose. Estava nos
píncaros de si mesmo, mas sentia-se fora da realidade, quase como quando, por
pura gula mental, olhamos uma palavra, um conjunto de letras, um significante
atribuído algures pelo caminho, e olhamos obcecadamente até a palavra e todas
as suas letras parecerem irreais, simplesmente traços. E passando dessa forma a
realidade, sentimos que a nossa cabeça vai explodir, por racionalmente a termos
esgotado a olhar de forma psicótica para letras e palavras. Sentia-se assim,
como se a sua vida estivesse num limbo entre o ser e o imaginar, ainda mais do
que tinha sido todos aqueles anos, em que se sentava e criava a irreal
realização de todos os seus sonhos, sem nunca depois fazer por isso. Não
conseguia dormir na ânsia de conseguir ler, ver e ouvir todas as notícias de
todos os meios que estivessem à sua disposição. Não queria dormir, existia
demasiada informação para consumir. De uma forma assustadoramente simples,
acabou por passar os dois dias a pouca comida, a muito álcool e muito tabaco.
Quando se via mais ébrio, tinha breves momentos de calma, acionando de seguida
horas noturnas e madrugadoras de desespero e incompreensão, envolvido
descontroladamente em notícias, informação, letras e palavras. Não aguentaria
muito mais tempo assim, mas as horas iam passando, e mesmo que lhe parecesse
que estava a ser injetado, ao mesmo tempo, com doses animalescas de medo,
adrenalina e vontade de dar um tiro na cabeça, a confiança ia aumentando com o
andar do relógio e as alterações na luz da rua. Em casa não mantinha qualquer
luz acesa, independentemente da hora, não fosse o clarão denunciá-lo. Parvoíce,
pensou ele novamente, mas sentia-se mais seguro assim. De que forma um obcecado
pode auferir mais controlo da situação, sendo um maníaco e intolerante à
incerteza, que construindo à sua volta um falso sentimento de pertença de tudo
aquilo que corre em voltas na sua mente? Estava seguro e fechado às suas
chaves. A alienação intrínseca à sua forma de ser cerrou-se ainda mais durante
as 48 horas de espera, fazendo com que o tempo, as horas, os minutos, fossem
apenas medidos pela frequência com que os boletins noticiosos eram atualizados.
Nem a discrepância luminosa das dos dois degraus da escada de cada dia o faziam
entender até onde o relógio tinha andado. Foi dar por si de olhos completamente
vazios a olhar para a TV, cada vez mais desfocada e turva, como se uma nuvem de
fumo pouco denso estivesse a alimentar-se de si próprio, mas com um aspeto
negro, calmo e morto. Foi o cheiro a queimado que acordou o seu ser mais básico
e o fez despejar, sem muito trabalho das ferramentas cognitivas, um garrafão de
água para cima da televisão e da pequena chama que lhe criou toda aquela nuvem
na vista. Este começo de incêndio ateou uma pequena chama no adormecimento
torpe e fê-lo procurar um relógio. Horas. Tempo. Sábado devia estar mesmo à
porta. Eram vinte e uma horas e vinte e sete minutos de sexta-feira. Concluiu
que dali a um par de horas seria sábado e que sairia de casa pela madrugada, de
modo a apanhar as ruas desertas de humanidade, repletas de homens e mulheres.
Viu pela penúltima vez as últimas notícias e tomou um banho rápido. Desenrolou a
toalha do corpo e deitou-se nu, não sem antes misturar com um copo de Jameson
um par de comprimidos sonolentos. O despertador tocou às 4 da manhã como tinha
previsto. Vestiu-se e comeu a melhor refeição dos últimos dias, duas tigelas de
papas de aveia com cereais e mel, duas bananas e um copo de café. Viu pela
última vez as notícias, o único momento em que uma ventania fez levantar a
cabeça vazia e esmagada com que fez as últimas ações da noite de sexta-feira. Mas
nada, continuava incólume, pelo menos para os media, e isso deveria ser bom,
pensava ele. Fumou um cigarro e lembrou-se da situação que o tinha levado ali, aquela
cidade, onde era uma cria à procura de um daqueles casos raros em que um ser de
uma espécie acolhe um órfão desolado de outra forma e feitio. Já se tinha
esquecido de como a amava, de como ela tinha morrido, e de no dia a seguir ao
velório ter apanhado o primeiro bilhete para esta cidade. E esta rapidez do
mundo provocou-lhe um salto no meio do peito. Parecia tudo tão longe agora, e
tão perto no tempo em que tudo aconteceu. Sentia-se sozinho e vivia em esforço.
Era-lhe sufocante viver consigo próprio e as borboletas intestinais, o medo e a
frustração, que davam as mãos para formar uma barreira humana de ódio por si
próprio. Levantou-se e olhou o pau avermelhado, agora seco, rodeado de moscas,
como um festim do qual ele tinha sido anfitrião. Pensou que as moscas deveriam
estar satisfeitas com a situação e não as incomodou, afinal de contas todos chupamos
sangue seco em algum lado para chegar ao dia seguinte. Quatro e quarenta e três
da manhã, marcava o relógio de pulso quando fechou a porta atrás de si e
encarou a luz da cidade. A primeira vez que respirava e vivia da vitalidade da
cidade, sendo responsável pela subtração forçada de um dos milhões de elos
vivos da metrópole. Começou a descer a rua. Sentia que todas as pessoas estavam
a olhar para si, à procura de algum deslize que o denunciasse. Mesmo com os
passeios vazios e as luzes das janelas dos prédios apagadas, sentia o ardor
desses olhares reprovadores a marcarem-lhe, a ferver, as costas. Lembrou-se
novamente do que o levou à cidade: nada. Exceto a fuga de algo que nem ele
sabia definir por palavras, mas que na sua consciência apareceu como um caminho
rápido para todo o sítio que não aquele. Redenção? Talvez. Amava-a muito e não
gostava de se lembrar dela, e odiava lembrar-se do que não se queria lembrar.
Mais um dos motivos pelo qual não gostava de quem era, e vivia agora sozinho,
exilado naquela grande manifestação de betão e ferro. A paixão que sentia por
ela era desmesurada, sentia que as suas mãos podiam moldar a pele dela, como
uma qualquer escultura esquisita que se vê nos museus de arte moderna, e isso
era o seu desejo por ela. Por vezes, olhava para ela nua e achava que era
irrelevante moldá-la às suas mãos. Ela, para ele, despida, era por si só uma
escultura da época clássica, respirando grandeza, fazendo-o suar de admiração.
Ele era dela e da arte do corpo dela. Até aquele dia. Agora ela não existia,
por mais que lhe agarrasse as mãos e os tornozelos e lhe soprasse aos ouvidos
para lhe achincalhar as ideias. Estava morta e enterrada e por isso ele estava
ali. E por estar ali tinha o falso gosto de conhecer a sua nova casa. E em toda
esta sucessão tranquila de movimentações velozes da vida e da indiferença de
uns perante todos, tinha morto um homem. Quando o sol começou a surgir, a
cidade começou a salpicar-se de pessoas, as mesmas pessoas que, mesmo estando a
dormir, o olhavam. Ou assim pensava ele sem pensar muito e mal. Não sabia bem o
que andava a fazer na rua, um teste a si mesmo, ao que tinha feito, ao
conseguir ou não sair impune perante os outros, visto que perante si a sentença
era já de nascença e perpetuada com o decorrer dos anos e do nojo de viver
naquela casca. Os seus olhos serviam apenas para fitar o chão e os pés dos
restantes transeuntes citadinos, que iam aumentando no sentido do relógio,
permitindo-lhe desviar-se deles. Naquela altura qualquer contacto físico e visual
com outro ser humano parecia-lhe fatal. Ao caminhar concentrado nos pés, perdeu
toda a noção de onde estava, e seria-lhe difícil, se por acaso o encontrassem
na rua e lhe perguntassem onde esteve, ele conseguir responder que caminhos fez
ou como eram os sítios da cidade onde tinha estado. Além do chão e dos pés dos
habitantes rígidos das paredes cimentadas, os ponteiros eram os únicos amantes
das meninas dos seus olhos. Tic Tac Tic Tac. As horas passavam e consumiam-lhe
os cigarros, por sorte, ou por negligenciada inteligência, trouxe dois maços.
Tic Tac. Eram duas da tarde. Haviam passado muitas horas de tagarelice entre os
seus dedos dos pés e o interior dos sapatos; e o exterior dos sapatos e as
ruas. Tinha fome. Comprou 7 jornais e sentou-se no restaurante mais próximo.
Não sabe o que comeu, carne e batatas, provavelmente. Pediu uma gelatina, um
café, e leu todos os jornais, alertando o empregado, de vez em quando, para o
facto de o seu copo estar vazio. Deve ter bebido uns cinco copos de whisky. Lembra-se
de retribuir a refeição ao restaurante com algum dinheiro, quanto ao certo? Não
se recorda. Saiu do restaurante embalado em álcool e voltou ao estado de alerta
máximo (e exagerado). Aliás, apenas tinha estes dois estados: ou se sentia
morto, ou estava vivo demais para querer viver. Começou a rever as mesmas
palavras da noite anterior: Matei, polícia, preso, matei, polícia, preso,
matei, polícia, preso. Tic Tac, continuava a
fazer o relógio. Tic, Matou, Tac, polícia, tic tic, tic tac, preso, tic tic tic.
Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Sentiu a sua cabeça
no alto das nuvens, olhando para os rebaixados como meros seguidores do horário
biológico, incapazes de matar alguém, o que ele já tinha feito. E agora, depois
de tanto medo, nada tinha acontecido. Tinha um púlpito próprio construído do
nada e só com uma madeira que era agora casa e alimento de moscas sedentas de
sangue seco. Pela primeira vez na vida era aquilo que sempre aguardou, algo.
Sentiu-se tonto e enjoado. Estava feliz por ter morto alguém, era um barquinho
de jornal no meio do seu fatal oceano árido. Pensou que era errado sentir-se
assim. O álcool arredondava-lhe todos os cantos do mundo que os seus olhos
absorviam. Levantou-se, precisava de andar. Andou. Tic, Matou, Tac, polícia,tic
tic, tic tac, preso, tic tic tic. Tic, Matou, Tac,
polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Estava frenético, até que notou uma maior
ausência se sapatos iguais no chão, era o passar das horas, obviamente, e isso
acalmou-o. Apenas alguns minutos depois parou para dar um jeito aos sapatos.
Aquele cheiro. Voltou a inspirar fundo com medo de levantar a vista, sem
perceber o porquê, mas aquele cheiro era-lhe familiar, e naquela cidade não
queria que nada tivesse a ver com ele, e o que tinha envolvia morte. E prisão.
E polícia. E sangue. Cheirava a pipocas. Levantou a cabeça e lá estavam eles
outra vez: Jean Reno de gorro e uma jovem Natalie Portman. Levantou os olhos e
leu: “Leon, o Profissional”. Tinha-se encaminhado ao único local da cidade que
não queria ver, mas automaticamente pensou que não poderia estar noutro lado.
Fechou os olhos por uns segundos e abriu-os subitamente. O clarão de luz
aleijou-lhe a vista e estendeu uma breve névoa sobre o panorama, antes de o
apresentar ao cenário chocante com que se deparou: tudo estava exatamente
disposto da mesma forma aquando da sua última visita àquele cruzamento.
Escurecia e deixou-se, apático e estúpido de ignorância, assistir ao espetáculo.
O panorama gelou-lhe o sangue, os ossos, os pelos púbicos e o estômago. Sem dar
por isso, aliás, sem dar por nada, tinha chegado outra vez a noite, e a velhota
estava novamente a fechar o quiosque, o casal de namorados estava à porta do
museu, e o homem idoso, que agora usava uma t-shirt de alças e se encontrava, surpreendentemente,
tatuado dos ombros às pontas dos dedos, permanecia isolado na pequena
bilheteira do antigo cinema. Não tinha nada contra rotinas, tinha a sua e era
normal que os seus cúmplices daquela noite também a tivessem. No entanto, não
estava à espera de ver que o morto fazia parte da fotografia, ainda para mais
se o morto estava afinal vivo, e se encontrava exatamente na esquina onde tinha
sido morto. O larápio vivo, claro está. De gelado passou a estar a duas passas
do fumo frio da morte, ao ver o homem que tinha assassinado, vivo. Aquele sujo
e imundo ladrão a que tinha roubado a respiração e o sangue para alimentar as
moscas do seu apartamento. Parou aqui durante uma dúzia de segundos: as moscas.
Tinha o quarto cheio delas. Queria voltar para lá e sentir o cheio do sangue
seco, da merda que as moscas iam deixando pela casa, e de absorver a sensação
de unidade que as moscas alimentadas deixavam no ar. Voltou à esquina do antigo
cinema com a avenida principal. Um pequeno homem careca, de pasta e fato, de ar
falhado e enfezado, deambulava na sua insignificância na direção do ladrão, que
prontamente tratou de o abordar de navalha na mão. Ao ver aquilo, e ainda no
choque de se ver indeciso na sua situação, se o que estava a ver era real,
pensou em ir salvar o careca e matar, quem sabe, e pela segunda vez, o gatuno.
Ao primeiro passo sentiu uma mão a agarrar lhe o cotovelo direito enquanto
ouvia um suave, mas firme, “Não”. Virou a cara. Lá estava ela, aquelas pernas
merecedoras de punheta atrás de punheta, cobertas com os mesmos curtos calções
de ganga. Ergeu ainda mais a cabeça e viu que ela vestia o mesmo blusão preto.
Merda, como era bonita, pensou ele. E a rapariga ocupou-lhe todo o pensamento,
todo o corpo, toda a tesão que começou a sentir, esquecendo-se completamente do
vivo que achava morto e do careca com ar de infeliz que ia salvar. Ela esboçou
um sorriso ambíguo quando finalmente os seus olhos se cruzaram, como se o
tivesse reconhecido e soubesse dele algo que nem ele próprio conhecia ainda.
Ele entrou em pânico, mas foi subitamente embalado pela voz suave que saiu
daquela figura de roupa neutra, dado o tempo insosso, que se sentia como da
outra vez. “Não te metas, isto é entre eles os dois. Oh ! Estou a ver que
também és do que gostas, an? Não percebo qual é a vossa, viram o Fight Club e
pronto, querem apanhar nos cornos? É isso ? Não sejas acanhado, fala comigo!”,
disse ela, levando depois o cigarro à boca. Naquele momento, ele, impávido e
estúpido, não podia morrer porque se sentia morto, não conseguindo pensar. Ela
voltou a abrir a boca para deitar fora o fumo e acrescentou, inclinando a
cabeça para o sítio onde neste momento apenas se encontrava o ladrão morto ou
vivo, falando dele. “Já topei ali a cena do Zed há algum tempo. Até o admiro
por juntar tão facilmente aquilo que mais gosta, roubar e apanhar. Não percebo
esta merda do masoquismo, apesar de gostar de sair marcada quando arranjo umas
fodas. Mas o Zed gosta mesmo de apanhar, lembro-me bem da noite em que quase o
mataste, pensámos todos que tinha sido desta, mas ao fim de cinco minutos ele
acordou e estava mais feliz que nunca. Não parava de exaltar que tinha sido a
maior carga de porrada que tinha apanhado. Até se tinha vindo nas cuecas tal
foi a excitação. Passou-se! Começou a dizer que tinha visto o outro lado e
merdas assim. Mas pronto, ele é louco e aqui já nos habituámos, não nos faz
grande mossa, visto que ele vive para tentar apanhar nos cornos e só rouba de
vez em quando. Aquele careca teve azar por ser enfezado, e o Zed também, neste
caso, tinha-se vindo todo com três biqueiradas na barriga. Um par de notas de
vinte sabe-lhe a pouco. Tu pelos vistos és da laia dele e voltaste para mais. É
pena, sabes? Até tens bom aspecto, mas não gosto de gajos que gostam de levar
pancada para se esporrarem todos, desculpa lá”. Piscou-lhe o olho e reparou que
tinha deixado queimar o cigarro quase até aos dedos, limpou a cinza do casaco e
dos calções de ganga, atirou a beata para o chão e pisou. Ele acompanhou esse
movimento como se a sua vida dependesse disso. Aquelas pernas. Ela calou-se e
encostou novamente uma perna à parede. “Eu…não… sou… desses”, retorquiu ele
quase sem se ouvir. A rapariga também não ouviu e esticou o ouvido na direção
dele, para ouvir melhor. “Eu não sou desses, pensei que o tinha morto e agora…”
Não conseguiu acabar a frase e vieram-lhe a cabeça todos as consequências que
aquele não-momento e não-acontecimento lhe tinham causado. Os dois dias fechado
em casa. O banquete seco das moscas. A boca dela caiu um bocado, como que a
compreender a implosão dos pensamentos dele (está vivo!! gritava ele para ele).
“Ele finge que é ladrão, mas também rouba, porque gosta de apanhar porrada?”,
cuspiu ele num tom tão infantil que ela não conseguiu conter um riso claramente
condescendente antes de montar um “Sim” nos bonitos lábios que tinha na cara
redonda de olhos escuros e nariz ligeiramente levantado na direção do seu
cabelo, que nem era curto nem comprido, apenas desarrumado. Medianamente
desarrumado, no que toca ao tamanho e volume. Ele espreitou mais uma vez para a
esquina à procura do homem que pensava ter morto, não o encontrou. Deu meia
volta, lançou um “obrigado” à rapariga e andou, ouvindo ao longe um gozão
“adeus, volta sempre”. Nas cidades as noites não têm estrelas. Ele andou até
casa de cabeça vazia, espelho do oco do chão através dos seus olhos. Entrou em
casa e cheirava mal: o pau, o sangue e as moscas. Pegou na madeira e lançou-a
janela fora, na esperança que as moscas o seguissem. Teve sorte. Tanto com as
moscas como com o facto de não ser assassino. Quase que não se odiou quando
adormeceu. Acordou tarde e, ignorando a imundice habitual da sua casa, vestiu-se
e almoçou fora. Ah, como o peso que lhe tinha saído dos ombros o tinha tirado
da leveza do nada e assentado os seus pés ao chão. Sentia-se bem e aproveitou
para ficar numa esplanada a ler Dostoievksi. Noites Brancas, rezava a capa. Fumou cigarro atrás de cigarro e
embrenhou-se no livro de enfiada, revendo-se na boca sem fundo e sonhos sem
pensar do personagem principal. Escurecia. Levantou-se. Andou até ao antigo
cinema e mal dobrou a esquina esboçou um sorriso irónico. A velhota fechava o
quiosque de livros. O velho tatuado esperava vender bilhetes. O casal de
namorados ia a entrar no museu de arte moderna. O ladrão (vivo!), que afinal
sujava os boxers sempre que levava um murro no nariz, ansiava. Ela estava de
calções de ganga e blusão preto, e ao vê-lo ela sorriu, mas ele ignorou-a e
desceu a rua. O ladrão estava de costas e nem viu de onde vieram os dois
pontapés que lhe acertaram nas costelas. Foi ao chão. Esganiçando de dor e
prazer, ouviu um “não tens de quê”, enquanto o seu agressor lhe enfiou duas
notas de vinte na boca e virou costas. Ela tirou o cigarro da boca quando ele
se aproximou dela. “Para que foi isso?”, perguntou-lhe com um sorriso sádico.
“Estou contente por ele estar vivo, dei-lhe uma prenda”, respondeu ele
encolhendo os ombros. Ela riu histericamente. Ele sentiu calor no peito.
“Alguma vez viste o Leon?”
“Não”, respondeu ela.
“Vamos, eu pago.”
Falaram com o velho de braços tatuados e entraram no velho cinema. Na esquina,
com duas notas de vinte na boca, Zed gritava sons de prazer e quase morte,
enquanto propositadamente, com as mãos, fazia roçar um no outro os dois ossos
em que se tinha transformado uma das suas costelas. A dor era agonizante.