sábado, março 30, 2013

Ratos


Tentei fazer amigos
acompanhar
fazer sentido com tudo o que saía da minha boca
mas fugindo

Comprimidos e sonhos sortidos
realidades criadas
raízes de dor inventadas e ratos moendo a cabeça
roendo as orelhas
desfazendo em sangue tudo o que é físico

Morto ou vivo a razão é silenciosa
morto ou vivo ou meio termo
roubando o fogo mas para aniquilar a humanidade em minha
ratos a comerem-me em vez de águias
sempre a deturpar mitologias
mas a ir
pouco e pouco
todos os dias

Tentei fazer amigos
dar lógicas aos sentidos
engatar-me a mim próprio
mas o belo não é agradável ou não
exterior ou interior
define-se apenas pela capacidade de controlar a dor

Feio.

terça-feira, março 26, 2013

O Rei vai nu

É isso
por mais que conte o arbítrio
e tente irremediavelmente dar-lhe uma dose de sorte
a questão torna-se como as minhas usuais formas
antagónicas por serem de fácil uso para mentes fracas

sensações percorrem-me todos os pelos do corpo
uma libido para lá do sensual
tornando o simples sangue ordinário
e atesta-me a febre de não resolver

nunca destinar será também uma arte
se delas não sou pródigo
e da inveja também se ferve leite

a nata da solitude está na cobertura que caiu
aquilo que toda a gente viu
o rei vai nu mas vestido nunca usou coroa

Dirigível


Não consigo tirar os olhos do céu sibilante
(a palavra não é das que mais uso, nada curioso)
Não desmoronarei tão rapidamente o dirigível automático
A aceleração cada vez maior das pessoas
dos relógios e das fronteiras
a minha solidão potenciada ao afastamento humano
tal maneira que os sítios mais humanos conseguem ser artificiais
nos naturais a vida que passa é morte
aprender a voar
aprender a não ter medo de preocupar


Canoa


largas se tornam as voltas
e as revoltas
e as notas
o preço de almejar sempre o corpo

sei que sou eu mas não sei se a culpa é minha
ela e a sua história
a minha perdição por marcas e cicatrizes
tatuagens do que passou
do cliché das lágrimas em industrial
suor
sangue
sexo

desmesurado e enamorado por nada palpável
que torna o torneável uma perdição
a criação de uma luta arranhada
que se perde em juras e depois em dor

enrolada em arame farpado és um livro
só essas páginas me interessam
tesão macabra por quem anda quase em tantos carrosséis como eu
irracionalmente o desconhecido não me afasta
aumenta e faz crescer a ansiedade pela vida que não existe
tornando-o apenas o que há para viver
e essa cruzada em vão lembra-me o desgosto
desilusão continua e embarcada
numa pequena canoa parada num rio que secou
comandada por um cego surdo e mudo

sei que sou eu mas a culpa não é minha
ajuda-me e repela-me de mim próprio
quer fugir desta forma

se sou eu a culpa é minha
não é dela
não pode morrer sozinha
a culpa

ela ainda nem vive mesmo que me chame

sábado, março 23, 2013

Retrato


Está sentado. Parado. Porque todos os movimentos que faz são representados por réplicas em vulto de si mesmo, que passam como espectros por ele. Por dentro dele. Pelo estômago, pela ausência de alma. Como fantasmas. São clones e falsos movimentos de alguém que não se mexe, de uma imagem que não vê, e que por vezes se entretém com essas sombras.
Está só.
Permanece no mesmo sítio há tanto tempo que lá fora parece-lhe uma imensidão do inalcançável. Com jeito será mesmo assim, e as paredes parecem à prova de fantasmas. Sempre.
A vidraça da sua casa dá-lhe a vizinhança da inveja que os outros lhe provocam, aqueles que, a seus olhos, alcançam o tal. Algures, em alguns dias, caem-lhe fotografias nas mãos, de um homem sentado. Caem fotografias nas mãos de um homem sentado. Chovem retratos de imaginações de inércia, replicadas contra paredes de osso.
Sente-se enjoado, como se lhe fossem dados a comer todos os retratos, como se a papel químico todas as suas opções (uma opção: estar sentado) fossem (e são) erros contínuos. Disfunções apenas separadas pelo andar da idade. E o que o andar da idade lhe dá, tira em compensação dos ponteiros, que não param.
Enquanto olho para ele, a poucos centímetros das suas mãos, ele continua sem reparar, e os espectros atravessam-nos a espinha sem perdão.

quinta-feira, março 21, 2013

Azedume

Mesmo que só debaixo da lama me venham as palavras
E que eu pare pouco para as encarar
Mesmo que essa lama seja minha
E eu me importe mais do que pareço
A verdade é que me deixaste azedo
Mesmo que eu não queira

Mesmo que espreite
Só o teu nome dá-me náuseas
Mesmo que chute a vontade embora
Alimentas-me o ódio só por existires

Não sei o que é o ódio
Juro-te que não sei
Deverá ser algo como isto que causaste propositadamente

Mas se foi terá sido só da tua mente
Que da boca nada infernal se avistou
E espero que esses lábios ardam eternamente
E os dentes se comam a eles próprios

terça-feira, março 12, 2013

Perguntem-me do que estou a falar, cinco, Eu


Umas férias são sempre benéficas. Muito mais se não forem solarengas ou bronzeadas a loção de falsidade. A liberdade define-se não pelo que queremos, podemos, fazemos, mas antes pela própria noção de ela ser livre e não a conseguir controlar. Arrisco-me então a adivinhar livre como a ausência de controlo, atirando assim à definição o seu oposto para a definir. Parece-me lógico.

O regresso é que pode ser, e convém que seja, para bem ou para o mal, mas mais para o mal, atribulado. Muito se puder ser. Cheio de buracos.

É assim que me encontro depois de férias, na ladainha de um infinito conjunto de liberdades que não quero que me pertençam, ainda que sejam as minhas mãos, ainda que, eventualmente, sejam as minhas mãos, ou mesmo até, exagerando, que seja o meu controlo sobre as minhas mãos. Ou a falta de.

Não é ?

Regressei branquinho como fui.




terça-feira, março 05, 2013

Conto


Sentou-se na cadeira onde se deixava descansar todos os dias, enquanto sentia uma ansiedade desmesurada na barriga. Passava os dias assim e as noites não eram muito diferentes. Costuma dizer para si próprio: Porra, isto não são borboletas no estômago, são abelhas. O problema é que ele nunca entendeu o porquê de se ferroar a si próprio incontrolavelmente. Nos anos de miúdo, a época de meio miúdo, meio adulto, e mesmo agora chegando a homem, a incompreensão era-lhe instalada no sangue a cada beliscão interior, como um comboio pontual a apitar por dentro. No entanto, esta noite era diferente - como seria de esperar do fim do dia em que se tira a vida a alguém pela primeira vez. Naquela noite a música estava calada, nenhum livro fora da prateleira, apenas o seu ser desarrumado, e os ouvidos embalados pelas gotas de sangue que caíam cadenciadas no chão do quarto, saídas daquele pau arrancado à pressa para fechar os olhos ao tipo que tinha ficado estendido no chão, fora de tudo. Inevitável, pensou. Cada um tem o que merece, mesmo que não se saiba muito bem quem decide o que se merece, e quem é digno de quê. Já era de manhã quando a garrafa de Jameson e os cigarros acabaram. Reviu, releu e pensou tudo o que tinha acontecido horas antes. Apenas há 2 meses na cidade, ainda tinha por hábito conhecer ruas novas, bares novos, descobrir onde paravam as melhores putas e se vendia a melhor erva. Na altura, pelo que se lembra, já que os raios da manhã teimavam em queimar a linha lógica das ações projetadas na testa, estava a dobrar a esquina do antigo cinema. Achou piada ao cinema, que tinha em exibição Leon, o Profissional, do Besson. Ia entrar para ver o filme, até ser abordado pelo agora falecido. "Passa para cá a carteira se não queres que te esventre com esta navalha, caralho". O ladrão não era muito maior que ele e lutaram, até ao impagável momento em que olhou o chão e viu o pau. O passo a seguir foi rápido no passado, mas era agora lento na sua ideia. Via tudo em alta definição, a madeira seca a atingir o ladrão pelo maxilar. O sangue. O gajo no chão. Encostou o ouvido ao peito do desgraçado: nada. Estava morto. Fugiu. Foi esta espécie de filme macabro que viu no escuro a noite toda. Tentou abstrair-se da situação e a ideia que o absorveu foi a ausência infantil de ação por parte das pessoas que estavam naquela rua, naquela hora. Tinham partilhado com ele aquele momento e eram seus cúmplices. Mas aqui a palavra cúmplice adquire um significado estranhamente amplo. Pensou, estava o velhote da bilheteira do cinema, a senhora a fechar o quiosque de livros antigos e tabaco, um casal de namorados a sair do museu de arte e a peça mais intricada do puzzle: a rapariga de casaco preto e calções de ganga, uma vestimenta neutral dada a meteorologia mediana e insonsa, que fumava um cigarro com um pé encostado numa das paredes do cinema. As pernas foram a primeira coisa em que reparou, como eram bonitas e como ele gostava de pernas. Numa ocasião normal teria chegado a casa, bebido dois ou três copos e ia para a cama masturbar-se imaginando tudo o que poderia fazer com aquele corpo. Estava novamente perdido na imagem da rapariga quando se lembrou da conclusão a que estava a chegar: cúmplices. Ninguém mexeu um dedo quando repararam que ele estava a ser assaltado, atitude coletiva que não mudou quando o assaltante jazia estendido, lívido, sem respiração, com a cabeça a mijar sangue devagarinho para a sarjeta da esquina da rua do cinema com a avenida principal. Ao fim de uma hora de luz desistiu involuntariamente, mas todas as suas reservas estavam esgotadas, mentais e físicas. Dormiu até tarde e não sonhou com nada. Quando voltou a abrir os olhos sentiu a ignorância e rabugice do despertar, o que lhe trouxe felicidade durante os vinte segundos que essa sensação durou. Rapidamente voltou à realidade e, sóbrio e com a cabeça menos fervilhante, foi assolado por todos os possíveis problemas em que ainda não tinha pensado. Não que fossem rebuscados, eram até os mais simples. Matei, polícia, preso. Estas três palavras eram pequenos barquinhos de papel na corrente de incoerência que ainda toldava o seu raciocínio. Matei, polícia, preso, matei, polícia, preso, matei, polícia, preso. Por mais que tentasse formar uma pequena frase, estas três pequenas palavras voavam livremente no crânio. Como borboletas. Como o seu estômago. Tinha a boca seca e sentia fraqueza de fome. Sentou-se e ligou a pequena televisão, comprada em segunda mão, que tinha numa pequena mesa de fabrico escandinavo (que custam poucas notas), em forma de paralelepípedo mas oco, com aberturas de lado, onde tinha entulhado um monte de revistas e livros, ao acaso. Tinha a boca seca e voltou a beber água. Não conseguia olhar diretamente para as notícias, não conseguia comer, só beber água. A boca secava-se ainda mais no espaço torturador entre cada notícia. Tinha a certeza que a notícia iria surgir. “HOMEM MORTO VIOLENTAMENTE EM FRENTE AO ANTIGO CINEMA. TESTEMUNHAS IDENTIFICAM X COMO O AUTOR DO CRIME”. Fumou um cigarro e só aí conseguiu estabelecer uma linha comunicacional dentro de si próprio, mesmo que irrelevante para o caso. “Foda-se, foste esperto em ter comprado 10 maços de cigarros”. Sorriu. Era do seu apanágio elogiar-se a si mesmo por estes pequenos momentos de génio, para a seguir ficar envergonhado por o ter feito. Achava-se fraco e patético, com necessidade de se bajular durante um par de segundos para depois cair em si, e na triste figura que teimava em fazer perante si próprio. Três segundos. O sorriso desapareceu. Estranhamente o dia desenrolou-se sem ser noticiado o assassinato que tinha cometido. Intrigou-o mais do que lhe deu descanso, o facto de não ter sido aproveitada por um qualquer meio de comunicação, uma história tão boa como um zé-ninguém morto a paulada numa esquina. Teria que aparecer em algum lado, eventualmente. Numa altura em que tinha já abertos todos os sites noticiosos de que se lembrou, combinou uma coisa com ele próprio: se ao fim de dois dias ninguém o viesse prender, ou se nenhuma notícia aparecesse, aí sim sairia novamente à rua. Era já fim de tarde de quarta-feira e sairia sábado, se nada acontecesse. Deu por si numa nova encruzilhada. Sabia que não queria ser apanhado, mas também não queria sair à rua. Dado que os seus graus de satisfação e ansiedade não viviam a modos de nenhum fiel que os equilibrasse, o tombo do desespero levou-o a sentir-se em apoteose. Estava nos píncaros de si mesmo, mas sentia-se fora da realidade, quase como quando, por pura gula mental, olhamos uma palavra, um conjunto de letras, um significante atribuído algures pelo caminho, e olhamos obcecadamente até a palavra e todas as suas letras parecerem irreais, simplesmente traços. E passando dessa forma a realidade, sentimos que a nossa cabeça vai explodir, por racionalmente a termos esgotado a olhar de forma psicótica para letras e palavras. Sentia-se assim, como se a sua vida estivesse num limbo entre o ser e o imaginar, ainda mais do que tinha sido todos aqueles anos, em que se sentava e criava a irreal realização de todos os seus sonhos, sem nunca depois fazer por isso. Não conseguia dormir na ânsia de conseguir ler, ver e ouvir todas as notícias de todos os meios que estivessem à sua disposição. Não queria dormir, existia demasiada informação para consumir. De uma forma assustadoramente simples, acabou por passar os dois dias a pouca comida, a muito álcool e muito tabaco. Quando se via mais ébrio, tinha breves momentos de calma, acionando de seguida horas noturnas e madrugadoras de desespero e incompreensão, envolvido descontroladamente em notícias, informação, letras e palavras. Não aguentaria muito mais tempo assim, mas as horas iam passando, e mesmo que lhe parecesse que estava a ser injetado, ao mesmo tempo, com doses animalescas de medo, adrenalina e vontade de dar um tiro na cabeça, a confiança ia aumentando com o andar do relógio e as alterações na luz da rua. Em casa não mantinha qualquer luz acesa, independentemente da hora, não fosse o clarão denunciá-lo. Parvoíce, pensou ele novamente, mas sentia-se mais seguro assim. De que forma um obcecado pode auferir mais controlo da situação, sendo um maníaco e intolerante à incerteza, que construindo à sua volta um falso sentimento de pertença de tudo aquilo que corre em voltas na sua mente? Estava seguro e fechado às suas chaves. A alienação intrínseca à sua forma de ser cerrou-se ainda mais durante as 48 horas de espera, fazendo com que o tempo, as horas, os minutos, fossem apenas medidos pela frequência com que os boletins noticiosos eram atualizados. Nem a discrepância luminosa das dos dois degraus da escada de cada dia o faziam entender até onde o relógio tinha andado. Foi dar por si de olhos completamente vazios a olhar para a TV, cada vez mais desfocada e turva, como se uma nuvem de fumo pouco denso estivesse a alimentar-se de si próprio, mas com um aspeto negro, calmo e morto. Foi o cheiro a queimado que acordou o seu ser mais básico e o fez despejar, sem muito trabalho das ferramentas cognitivas, um garrafão de água para cima da televisão e da pequena chama que lhe criou toda aquela nuvem na vista. Este começo de incêndio ateou uma pequena chama no adormecimento torpe e fê-lo procurar um relógio. Horas. Tempo. Sábado devia estar mesmo à porta. Eram vinte e uma horas e vinte e sete minutos de sexta-feira. Concluiu que dali a um par de horas seria sábado e que sairia de casa pela madrugada, de modo a apanhar as ruas desertas de humanidade, repletas de homens e mulheres. Viu pela penúltima vez as últimas notícias e tomou um banho rápido. Desenrolou a toalha do corpo e deitou-se nu, não sem antes misturar com um copo de Jameson um par de comprimidos sonolentos. O despertador tocou às 4 da manhã como tinha previsto. Vestiu-se e comeu a melhor refeição dos últimos dias, duas tigelas de papas de aveia com cereais e mel, duas bananas e um copo de café. Viu pela última vez as notícias, o único momento em que uma ventania fez levantar a cabeça vazia e esmagada com que fez as últimas ações da noite de sexta-feira. Mas nada, continuava incólume, pelo menos para os media, e isso deveria ser bom, pensava ele. Fumou um cigarro e lembrou-se da situação que o tinha levado ali, aquela cidade, onde era uma cria à procura de um daqueles casos raros em que um ser de uma espécie acolhe um órfão desolado de outra forma e feitio. Já se tinha esquecido de como a amava, de como ela tinha morrido, e de no dia a seguir ao velório ter apanhado o primeiro bilhete para esta cidade. E esta rapidez do mundo provocou-lhe um salto no meio do peito. Parecia tudo tão longe agora, e tão perto no tempo em que tudo aconteceu. Sentia-se sozinho e vivia em esforço. Era-lhe sufocante viver consigo próprio e as borboletas intestinais, o medo e a frustração, que davam as mãos para formar uma barreira humana de ódio por si próprio. Levantou-se e olhou o pau avermelhado, agora seco, rodeado de moscas, como um festim do qual ele tinha sido anfitrião. Pensou que as moscas deveriam estar satisfeitas com a situação e não as incomodou, afinal de contas todos chupamos sangue seco em algum lado para chegar ao dia seguinte. Quatro e quarenta e três da manhã, marcava o relógio de pulso quando fechou a porta atrás de si e encarou a luz da cidade. A primeira vez que respirava e vivia da vitalidade da cidade, sendo responsável pela subtração forçada de um dos milhões de elos vivos da metrópole. Começou a descer a rua. Sentia que todas as pessoas estavam a olhar para si, à procura de algum deslize que o denunciasse. Mesmo com os passeios vazios e as luzes das janelas dos prédios apagadas, sentia o ardor desses olhares reprovadores a marcarem-lhe, a ferver, as costas. Lembrou-se novamente do que o levou à cidade: nada. Exceto a fuga de algo que nem ele sabia definir por palavras, mas que na sua consciência apareceu como um caminho rápido para todo o sítio que não aquele. Redenção? Talvez. Amava-a muito e não gostava de se lembrar dela, e odiava lembrar-se do que não se queria lembrar. Mais um dos motivos pelo qual não gostava de quem era, e vivia agora sozinho, exilado naquela grande manifestação de betão e ferro. A paixão que sentia por ela era desmesurada, sentia que as suas mãos podiam moldar a pele dela, como uma qualquer escultura esquisita que se vê nos museus de arte moderna, e isso era o seu desejo por ela. Por vezes, olhava para ela nua e achava que era irrelevante moldá-la às suas mãos. Ela, para ele, despida, era por si só uma escultura da época clássica, respirando grandeza, fazendo-o suar de admiração. Ele era dela e da arte do corpo dela. Até aquele dia. Agora ela não existia, por mais que lhe agarrasse as mãos e os tornozelos e lhe soprasse aos ouvidos para lhe achincalhar as ideias. Estava morta e enterrada e por isso ele estava ali. E por estar ali tinha o falso gosto de conhecer a sua nova casa. E em toda esta sucessão tranquila de movimentações velozes da vida e da indiferença de uns perante todos, tinha morto um homem. Quando o sol começou a surgir, a cidade começou a salpicar-se de pessoas, as mesmas pessoas que, mesmo estando a dormir, o olhavam. Ou assim pensava ele sem pensar muito e mal. Não sabia bem o que andava a fazer na rua, um teste a si mesmo, ao que tinha feito, ao conseguir ou não sair impune perante os outros, visto que perante si a sentença era já de nascença e perpetuada com o decorrer dos anos e do nojo de viver naquela casca. Os seus olhos serviam apenas para fitar o chão e os pés dos restantes transeuntes citadinos, que iam aumentando no sentido do relógio, permitindo-lhe desviar-se deles. Naquela altura qualquer contacto físico e visual com outro ser humano parecia-lhe fatal. Ao caminhar concentrado nos pés, perdeu toda a noção de onde estava, e seria-lhe difícil, se por acaso o encontrassem na rua e lhe perguntassem onde esteve, ele conseguir responder que caminhos fez ou como eram os sítios da cidade onde tinha estado. Além do chão e dos pés dos habitantes rígidos das paredes cimentadas, os ponteiros eram os únicos amantes das meninas dos seus olhos. Tic Tac Tic Tac. As horas passavam e consumiam-lhe os cigarros, por sorte, ou por negligenciada inteligência, trouxe dois maços. Tic Tac. Eram duas da tarde. Haviam passado muitas horas de tagarelice entre os seus dedos dos pés e o interior dos sapatos; e o exterior dos sapatos e as ruas. Tinha fome. Comprou 7 jornais e sentou-se no restaurante mais próximo. Não sabe o que comeu, carne e batatas, provavelmente. Pediu uma gelatina, um café, e leu todos os jornais, alertando o empregado, de vez em quando, para o facto de o seu copo estar vazio. Deve ter bebido uns cinco copos de whisky. Lembra-se de retribuir a refeição ao restaurante com algum dinheiro, quanto ao certo? Não se recorda. Saiu do restaurante embalado em álcool e voltou ao estado de alerta máximo (e exagerado). Aliás, apenas tinha estes dois estados: ou se sentia morto, ou estava vivo demais para querer viver. Começou a rever as mesmas palavras da noite anterior: Matei, polícia, preso, matei, polícia, preso, matei, polícia, preso. Tic Tac, continuava a fazer o relógio. Tic, Matou, Tac, polícia, tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Sentiu a sua cabeça no alto das nuvens, olhando para os rebaixados como meros seguidores do horário biológico, incapazes de matar alguém, o que ele já tinha feito. E agora, depois de tanto medo, nada tinha acontecido. Tinha um púlpito próprio construído do nada e só com uma madeira que era agora casa e alimento de moscas sedentas de sangue seco. Pela primeira vez na vida era aquilo que sempre aguardou, algo. Sentiu-se tonto e enjoado. Estava feliz por ter morto alguém, era um barquinho de jornal no meio do seu fatal oceano árido. Pensou que era errado sentir-se assim. O álcool arredondava-lhe todos os cantos do mundo que os seus olhos absorviam. Levantou-se, precisava de andar. Andou. Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Estava frenético, até que notou uma maior ausência se sapatos iguais no chão, era o passar das horas, obviamente, e isso acalmou-o. Apenas alguns minutos depois parou para dar um jeito aos sapatos. Aquele cheiro. Voltou a inspirar fundo com medo de levantar a vista, sem perceber o porquê, mas aquele cheiro era-lhe familiar, e naquela cidade não queria que nada tivesse a ver com ele, e o que tinha envolvia morte. E prisão. E polícia. E sangue. Cheirava a pipocas. Levantou a cabeça e lá estavam eles outra vez: Jean Reno de gorro e uma jovem Natalie Portman. Levantou os olhos e leu: “Leon, o Profissional”. Tinha-se encaminhado ao único local da cidade que não queria ver, mas automaticamente pensou que não poderia estar noutro lado. Fechou os olhos por uns segundos e abriu-os subitamente. O clarão de luz aleijou-lhe a vista e estendeu uma breve névoa sobre o panorama, antes de o apresentar ao cenário chocante com que se deparou: tudo estava exatamente disposto da mesma forma aquando da sua última visita àquele cruzamento. Escurecia e deixou-se, apático e estúpido de ignorância, assistir ao espetáculo. O panorama gelou-lhe o sangue, os ossos, os pelos púbicos e o estômago. Sem dar por isso, aliás, sem dar por nada, tinha chegado outra vez a noite, e a velhota estava novamente a fechar o quiosque, o casal de namorados estava à porta do museu, e o homem idoso, que agora usava uma t-shirt de alças e se encontrava, surpreendentemente, tatuado dos ombros às pontas dos dedos, permanecia isolado na pequena bilheteira do antigo cinema. Não tinha nada contra rotinas, tinha a sua e era normal que os seus cúmplices daquela noite também a tivessem. No entanto, não estava à espera de ver que o morto fazia parte da fotografia, ainda para mais se o morto estava afinal vivo, e se encontrava exatamente na esquina onde tinha sido morto. O larápio vivo, claro está. De gelado passou a estar a duas passas do fumo frio da morte, ao ver o homem que tinha assassinado, vivo. Aquele sujo e imundo ladrão a que tinha roubado a respiração e o sangue para alimentar as moscas do seu apartamento. Parou aqui durante uma dúzia de segundos: as moscas. Tinha o quarto cheio delas. Queria voltar para lá e sentir o cheio do sangue seco, da merda que as moscas iam deixando pela casa, e de absorver a sensação de unidade que as moscas alimentadas deixavam no ar. Voltou à esquina do antigo cinema com a avenida principal. Um pequeno homem careca, de pasta e fato, de ar falhado e enfezado, deambulava na sua insignificância na direção do ladrão, que prontamente tratou de o abordar de navalha na mão. Ao ver aquilo, e ainda no choque de se ver indeciso na sua situação, se o que estava a ver era real, pensou em ir salvar o careca e matar, quem sabe, e pela segunda vez, o gatuno. Ao primeiro passo sentiu uma mão a agarrar lhe o cotovelo direito enquanto ouvia um suave, mas firme, “Não”. Virou a cara. Lá estava ela, aquelas pernas merecedoras de punheta atrás de punheta, cobertas com os mesmos curtos calções de ganga. Ergeu ainda mais a cabeça e viu que ela vestia o mesmo blusão preto. Merda, como era bonita, pensou ele. E a rapariga ocupou-lhe todo o pensamento, todo o corpo, toda a tesão que começou a sentir, esquecendo-se completamente do vivo que achava morto e do careca com ar de infeliz que ia salvar. Ela esboçou um sorriso ambíguo quando finalmente os seus olhos se cruzaram, como se o tivesse reconhecido e soubesse dele algo que nem ele próprio conhecia ainda. Ele entrou em pânico, mas foi subitamente embalado pela voz suave que saiu daquela figura de roupa neutra, dado o tempo insosso, que se sentia como da outra vez. “Não te metas, isto é entre eles os dois. Oh ! Estou a ver que também és do que gostas, an? Não percebo qual é a vossa, viram o Fight Club e pronto, querem apanhar nos cornos? É isso ? Não sejas acanhado, fala comigo!”, disse ela, levando depois o cigarro à boca. Naquele momento, ele, impávido e estúpido, não podia morrer porque se sentia morto, não conseguindo pensar. Ela voltou a abrir a boca para deitar fora o fumo e acrescentou, inclinando a cabeça para o sítio onde neste momento apenas se encontrava o ladrão morto ou vivo, falando dele. “Já topei ali a cena do Zed há algum tempo. Até o admiro por juntar tão facilmente aquilo que mais gosta, roubar e apanhar. Não percebo esta merda do masoquismo, apesar de gostar de sair marcada quando arranjo umas fodas. Mas o Zed gosta mesmo de apanhar, lembro-me bem da noite em que quase o mataste, pensámos todos que tinha sido desta, mas ao fim de cinco minutos ele acordou e estava mais feliz que nunca. Não parava de exaltar que tinha sido a maior carga de porrada que tinha apanhado. Até se tinha vindo nas cuecas tal foi a excitação. Passou-se! Começou a dizer que tinha visto o outro lado e merdas assim. Mas pronto, ele é louco e aqui já nos habituámos, não nos faz grande mossa, visto que ele vive para tentar apanhar nos cornos e só rouba de vez em quando. Aquele careca teve azar por ser enfezado, e o Zed também, neste caso, tinha-se vindo todo com três biqueiradas na barriga. Um par de notas de vinte sabe-lhe a pouco. Tu pelos vistos és da laia dele e voltaste para mais. É pena, sabes? Até tens bom aspecto, mas não gosto de gajos que gostam de levar pancada para se esporrarem todos, desculpa lá”. Piscou-lhe o olho e reparou que tinha deixado queimar o cigarro quase até aos dedos, limpou a cinza do casaco e dos calções de ganga, atirou a beata para o chão e pisou. Ele acompanhou esse movimento como se a sua vida dependesse disso. Aquelas pernas. Ela calou-se e encostou novamente uma perna à parede. “Eu…não… sou… desses”, retorquiu ele quase sem se ouvir. A rapariga também não ouviu e esticou o ouvido na direção dele, para ouvir melhor. “Eu não sou desses, pensei que o tinha morto e agora…” Não conseguiu acabar a frase e vieram-lhe a cabeça todos as consequências que aquele não-momento e não-acontecimento lhe tinham causado. Os dois dias fechado em casa. O banquete seco das moscas. A boca dela caiu um bocado, como que a compreender a implosão dos pensamentos dele (está vivo!! gritava ele para ele). “Ele finge que é ladrão, mas também rouba, porque gosta de apanhar porrada?”, cuspiu ele num tom tão infantil que ela não conseguiu conter um riso claramente condescendente antes de montar um “Sim” nos bonitos lábios que tinha na cara redonda de olhos escuros e nariz ligeiramente levantado na direção do seu cabelo, que nem era curto nem comprido, apenas desarrumado. Medianamente desarrumado, no que toca ao tamanho e volume. Ele espreitou mais uma vez para a esquina à procura do homem que pensava ter morto, não o encontrou. Deu meia volta, lançou um “obrigado” à rapariga e andou, ouvindo ao longe um gozão “adeus, volta sempre”. Nas cidades as noites não têm estrelas. Ele andou até casa de cabeça vazia, espelho do oco do chão através dos seus olhos. Entrou em casa e cheirava mal: o pau, o sangue e as moscas. Pegou na madeira e lançou-a janela fora, na esperança que as moscas o seguissem. Teve sorte. Tanto com as moscas como com o facto de não ser assassino. Quase que não se odiou quando adormeceu. Acordou tarde e, ignorando a imundice habitual da sua casa, vestiu-se e almoçou fora. Ah, como o peso que lhe tinha saído dos ombros o tinha tirado da leveza do nada e assentado os seus pés ao chão. Sentia-se bem e aproveitou para ficar numa esplanada a ler Dostoievksi. Noites Brancas, rezava a capa. Fumou cigarro atrás de cigarro e embrenhou-se no livro de enfiada, revendo-se na boca sem fundo e sonhos sem pensar do personagem principal. Escurecia. Levantou-se. Andou até ao antigo cinema e mal dobrou a esquina esboçou um sorriso irónico. A velhota fechava o quiosque de livros. O velho tatuado esperava vender bilhetes. O casal de namorados ia a entrar no museu de arte moderna. O ladrão (vivo!), que afinal sujava os boxers sempre que levava um murro no nariz, ansiava. Ela estava de calções de ganga e blusão preto, e ao vê-lo ela sorriu, mas ele ignorou-a e desceu a rua. O ladrão estava de costas e nem viu de onde vieram os dois pontapés que lhe acertaram nas costelas. Foi ao chão. Esganiçando de dor e prazer, ouviu um “não tens de quê”, enquanto o seu agressor lhe enfiou duas notas de vinte na boca e virou costas. Ela tirou o cigarro da boca quando ele se aproximou dela. “Para que foi isso?”, perguntou-lhe com um sorriso sádico. “Estou contente por ele estar vivo, dei-lhe uma prenda”, respondeu ele encolhendo os ombros. Ela riu histericamente. Ele sentiu calor no peito.
“Alguma vez viste o Leon?”
“Não”, respondeu ela.
“Vamos, eu pago.”
Falaram com o velho de braços tatuados e entraram no velho cinema. Na esquina, com duas notas de vinte na boca, Zed gritava sons de prazer e quase morte, enquanto propositadamente, com as mãos, fazia roçar um no outro os dois ossos em que se tinha transformado uma das suas costelas. A dor era agonizante.

domingo, março 03, 2013

Saudades de despejar palavras


As coisas vão com o caralho. A falsa vontade de fingir, a disfarçada música, a ingénua fiabilidade posta no sexo oposto. Tudo cai, como tudo ergue, como tudo será e deixará de ser.  O vislumbre futurista  é somente uma imaginação retorcida dos medos ? Tudo nunca é muito, e nunca foi em demasia querer olhar o céu, se nos pés só há ervas daninhas. Próprias. Porque culpar nuvem alheia pela chuva é demasiado mentira. A manhã continua mentindo, até que a noite conte a verdade, e assim continue o limbo. E tu?  Passas ao de leve como crina de cavalo em cordas de guitarra. Agarrasses a vida, assim só  bochechas. Porra, tinha saudades de despejar palavras, e isso não  é bom.