terça-feira, dezembro 17, 2013

Regresso

Às exclamações modernas
e os fingidos cadafalsos
presos e pendurados
na manga de um casaco bonito

Das linhas e dos botões
do que cose e do que o tecido consegue
que tapa e mostra e esconde
foge pouco e logo mostra o dente

À linha de morte
e ao pelotão de fuzilamento
transformo-me
e regresso

Das falsidades que me abrandaram
às verosímeis veias pela pele acima
regenero ao que é mesmo
e sinto-me como se fosse

domingo, setembro 01, 2013

simplicidade

Isso é para pessoas descomplicadas
a vida não é assim
a falta de ar é mesmo assertiva
não imaginada
não fictícia

pensamentos e merdas carregam a carroça
não tenho cavalos para tanta tralha nos cornos
nada é simples
nada se descomplica
apenas para quem não é como eu

de resto
só fodas de juízo

quarta-feira, agosto 14, 2013

Frascos

A fechar as portas
com pequenos feixes de luz a limparem o ar
vão-se estreitando e quase rodas as chaves

é hora de comer

o vinho já está na mesa
não tarda, e de uma só vez
os frascos ficarão vazios

é hora de ir
finalmente

quarta-feira, julho 31, 2013

magoar-te

Não vou estar nunca à margem deles
dos erros
estranha e linear forma de me mexer nos meandros da vida
pouco provável acertar
e não mudei muito sabes ?
por mais que tente
falho os passos todos
mesmo que os ensaie
não dava para bailarina
imaginas-me ? ri-te

porém nada
e mais uma vez nunca
igualará e me aleijará tanto
como te ter magoado

e pensar nisso é ressuscitar e voltar a enterrar tudo
como já fiz
fazendo tu depois
e com justiça

terça-feira, julho 30, 2013

diz-me

de volta ao lugar do costume
a solidão bate-nos aos pontos
não achas ?
puxarem-me pelos colarinhos não daria em nada
a correria é desaforada

está tudo parado
aqui e nas paragens
nas andanças e nas mudanças
que pensas das pertenças ?
é que não sei de onde sou
diz-me onde estou

segunda-feira, julho 29, 2013

Rastejar

Extrema regularidade afectiva
do atribuir até ao fim
mesmo antes de começar
não resulta em mais do que pequenas
e infelizmente rotineiras
linhas de coser de que me esqueço

desfazem-me as roupas
desfaço-me as rótulas
sou obrigado a rastejar
enquanto correm correm correm

Fracasso Presente

Teu fracasso corresponde à ampulheta
a gatilhos vários os tiros fogem erráticos
para baixo
o inferno
a estupidificação líquida de mim
quem seremos sabemos
nada mudará
carregaremos à balda nos botões
acreditando que as coisas permanecerão
sou vidente
não é preciso sê-lo
quando o presente foi e será

Subir Paredes

Não significa que esteja lá
bem lá
pode estar perto
como um mau casamento
ou um pequeno desvio no trânsito
que te custa cinco minutos preciosos
mas às tantas não sabes
os jardins são circulares e labirínticos
perdeste-te com facilidade
dás a mão à outra e rezas a algo
porém não existem mais dedos
e elas guiam-se uma contra a outra
ninguém te vai tirar dos muros
mesmo que do outro lado
perto
bem perto
esteja o dourado

sábado, julho 13, 2013

Psicose contigo

imagino quem sejas
recordo-me bem de quem és
no meio de todos os meus ataques psicóticos
na maré vaza e constante do não ter
querer almejar e não sei o quê
desespero de ser um fracasso e nada mais
desespero porque não me sais do crânio

rejeitas completamente a hipótese de sair do que me lembro
do meu corpo
saudades do toque do que era só teu
imagino em transe com quem estarás
o que farás
o que fizeste
quero saber tudo o que me faz mal
de ti
mas não posso
tenho que saber nada para não atar uma corda

que estou a fazer?
já nem o teu nome
é inútil eu sei
toda a minha luta é
e eu sou todo por início e por arrasto
mas nem sei já o teu nome
até podia ser Rebeca
mas mereces melhor
sempre
daí estares longe como ar

embrenho-me todos os dias no nascer das nuvens dos nervos
e nas pontas dos dedos
só queria chamar por ti

sexta-feira, julho 12, 2013

Enchentes

Existe pressão em demasia na correria
a protecção urbana nada esconde
a do campo tudo mostra
demasiada água na corrente
não me safo nem à tangente
multiplico-me em carraças piolhos e pulgas
salto para cima de tudo à procura de sangue
mas já todos têm remédio
e enchi-me de mim e dos outros que se encheram de mim
repele
sinto
volto ao chão
viro costas
partindo as próprias pernas para não os ver

Engates

Não me grites engates
nem sei quem são as pessoas
o que são pessoas
que fazem elas
mas existem mesmo mais pessoas além das que eu já conheço ?
não tenho língua para facilidades
certamente também não existirá
para propor de forma nunca subtil
certas sensualidades
mas tenho dedos para gatilhos
sair tudo corrido a mim
como um quadro que pinto
giz na ardósia
sangue nas paredes brancas
mas exagero
não há necessidade de mortos por falta de mútua consideração
guarda-se a dor na mala do carro e pronto
é irrelevante porque continua lá

Encaixes

Se pegasses nas minhas peças
e tentasses
por mais que as correntes de ar se impusessem
porventura tentares compor-me
reconstituir-me
mesmo com vento a favor
desistirias


Os encaixes não são mais que arestas
afiadas como só as paredes mal construídas podiam ser
cortantes de fora para dentro
de fora e dentro
não é por comportamento
não é por falta de disparos
são valias
inexistentes crescentes
pode ser ?

quarta-feira, julho 10, 2013

correntes

preso nas minhas masmorras
grilhões apertam-me a alargam-me a sinceridade
correntes envolvem-me
de ferro
de mar
do libertar à conclusão
triste e sábia
que a minha expressão é estar encerrado em tijolo
posso ser sincero preso
finalmente ser livre
desgostar de tudo
degustar todo o momento em que evito visitas à minha cela
o livro vai ficando sem assinaturas
as camisas de força sem remendos
mas apertam
as folhas vão desaparecer para conseguir mais evitações 

terça-feira, julho 09, 2013

acabaram-se os outros

com sorte o fim da linha nunca o tem sido
existe sempre mais para lá do que almejava a tristeza
em primeiro lugar
e o poluir-me a mim próprio
por conseguinte
de certo modo as coisas são sempre o que parecem
as pessoas vão-se sempre quando perecem
e não havia de ser diferente comigo

pois então só olho o meu umbigo
e os demais já não existem
o processo de acompanhamento terminou
encontro-me tão acompanhado quanto só

sem distinção nas duas sensações da palavra
sem separações e eu não sou nada
que mereça a falsa modéstia da importância

não me contento com a falsidade da tolerância
eu que também menti a mim próprio
e minto
corro tudo a pente fino
e não encontro senão ninguém

um falhanço redundante
não se surpreende com as conclusões
nem com as gastas admirações
suposições do que nunca serei

finalmente o compreenderam
e eu também

quinta-feira, julho 04, 2013

doer em tudo

o tempo não traz nada aqui
isto não é sobre o tempo
nem sobre ver se algo muda
são letras que tenho
mas são palavras do não tenho
esbanjo tempo
gasto palavras
letras erodam
elas que se gastem
como água aos molhos
ideias batem-me na cabeça
tenho falésias nos ossos
caio nelas
sem tempo
infinitamente

quero fugir de dentro
dormir sem roldanas

sento-me lá fora
olho o céu
à partida não vejo nada
é isso que quero
pretendo estar aqui o mínimo
lá fora não há nada
só fumo e água
as coisas nem são o que são quando é assim tão noite
podia ser afoito
podia
podia ter sido tantas coisas
bom
afável
normal
a moenga do crânio
do estômago
o estilhaço de todo o meu corpo contra o aço das não ideias
conjurados e reflectidos nas conclusões banais
devaneios estruturais
rochas em charcos
eu no mundo
eu em mim
doer em tudo

quarta-feira, julho 03, 2013

mata moscas

desengane-se quem
a priori
e por lógica de sucessão
possa pensar que é mais um discorrer sobre os meus próprios receptáculos
que estão bem vazios de alma e companhia
tenho asas
tenho moscas coladas
que me transformam numa mais feia
mais gulosa
mais aglutinadora de ausência
sou esmagado a cada som
e merecidamente
claro
valha-lhes isso

segunda-feira, julho 01, 2013

Procura-se

Necessidades mundanas e desumanas
que me atormentam constantemente
de mãos e pés atados
gostava de entrar aos pulos pelo teu jardim
saber onde ficas
onde é que as plantas mais bonitas crescem
onde te escondes
procuro-te nas entradas
nas saídas
só com os olhos
procuro-te nas chegadas
nas saídas
e só pelo cheiro
pois só pelo cheiro é possível saber-se alguém
e saber o seu sabor

procuro-te indeterminadamente
enquanto as noites e o frio existirem
e só nessas condições alguém merece que se procure

estás a ler e isto não é para ti
eu escrevo escrevo escrevo
mas desta vez não é para ninguém

apenas para a procura
que tragam na maré de volta
que me tragam de revolta
na esperança de achar um novo tesouro
um novo alvo para as minhas respostas

Desgosto

agilidade mórbida que não acontece
e não esqueço o que não existe
a putrefação da falta de tino e garra
desprezo pela desprezível qualidade de ser
do tempo a correr
de foder
a vida só
e as unhas também
e a cabeça idem
ai de quem assim se retome
pois sou egoísta
sol e lua e luzes e águas só para mim nascem
apenas a minha visão é correcta
o meu vislumbre mais espalhafato
mas atónito amorfo e não operacional
uma performance artística
solista
vou-me devorar pela boca até ficarem só dentes
enfiar as mãos garganta fora
acidez e refluxo
vómitos de desespero e falta de gosto
desgosto de estar vivo

O Campo, parte 2

O calor vem
vai
as folhas secam
chove
eu caio de joelhos na lama e tento esfregar os olhos
agora tenho lodo na vista também
não te vejo
e não mereço que tenhas qualquer consideração por mim
eu não tenho qualquer consideração por mim
mas o calor veio as folhas secaram e depois chove
os caracterizadores de passagem estão lá
e é isso mesmo que fazem
dizem-nos que tudo tem um término tal como começou
mas oh
mesmo não estando ainda estás
e agora faz calor no campo outra vez
como da outra vez
o campo sempre será parecido contigo
certo como as folhas continuarem a cair
e os meus olhos serem enlameados
por ti e pela sôfrega paixão sem agasalho
esgotada a todo o lado menos em mim
que não sei porque a guardo enquanto os dias continuam a passar

O Campo, parte 1

Que da laia de seres imaginários e bucólicos não fosses
e certezas teria que não existias
o que és e como és aos meus olhos e aos teus versados braços
infames e mais belos que o belo
acrescentando luz e música ao dia que floresce
lá venho dizes tu
e o meu corpo estremece de esclarecimento e amor
como se nada fosse
e se nada num rio
em que as águas paradas são jóias e brilhantes
alavancas incandescentes e pirilampos
só tu poderias mexer com a natureza
e ela andar ao ritmo das tuas pernas
e a tua pele ser fácil e reconfortante como uma planície
sinuosa de travos amargos e pecadores
doces e não mensuráveis na minha boca

sexta-feira, junho 28, 2013

A lua

Por vezes sinto que a lua está em todo o lado

este calor estúpido e desnecessário lembra-me dela
que também não gosta dele
como eu

não vejo a lua faz meses
reparo nela todos os dias
na minha cabeça
vejo-a tão bem ou melhor do que em pessoa
até porque se a visse de perto ficava sem ar no meio do espaço
se lhe tocasse o vácuo de recíproco faria a minha cabeça estoirar

a lua não tem classe nenhuma
é inclassificável
musicalmente irrepreensível sem saber
simplesmente está no ar
não se ignora

as coisas vão passando
não sou lobisomem para sempre
espero eu
mas a lua
cheia ou não
é mais sensual que todas as mulheres
o seu silêncio mais abrasivo que um rugido de leão

por vezes sinto que a lua está em todo lado

quinta-feira, junho 27, 2013

cessar de existir

Cessar funções
sem repercussões
fazer parar a bomba de sangue
sem ninguém saber
estremecer
ou então fazer a bomba de sangue disparar
mas pele fora
aí sim até parar

distrair para fugir
que ninguém saiba quem sou
que não tenha pai nem mãe que me conheça
sofrimento desnecessário

suicídio é um nome feio
não tem nada a ver com isso
é mesmo encerrar portas
fazer o que é melhor para a equipa
para mim e para ele
uma cabeça pensa sempre melhor do que duas
somos um par imparável até ao dia em que tenhamos coragem de usar

Viver é Fodido

A ternura do meu corpo
por estar a foder a minha vida toda
o tenro da carne depois de dura
do escanzelamento já maduro
de tudo o que só foi puro enquanto não pensei
não senti
só vivi

mas só viver é fodido
e as asneiras não são para parecer rebelde
não o sou
viver é que é mesmo fodido sabem ?

e o amor é bonito
eu sei
admito-o e gosto dele
mas onde está ?

emagrecer só por dentro
de sonhos nunca
mas de felicidades sempre
sempre a esmorecer
sempre sempre sempre
como se sempre o mesmo
como sempre a mesma merda
almoço os mesmo estilhaços de mim próprio
porque acordo enjoado de me odiar
e de terminar as horas de sono e sonho
onde tudo vale
onde nada conta

relações necessárias / foice

Vou enclausurar nas relações necessárias
o senhor da fruta
a senhora da loja
a senhor professora e o senhor doutor
o senhor pai e a senhora mãe

as demais não são mais do que planícies de sentimentos
vastos e vastos campos sem nada
de inimizade em inimizade
menos falso a cada falsidade
mais verdadeiro a cada verdade
e o plausível de tudo ser dor

para pânico chegou eu
para morte chegamos nós
eu e tu
dona da foice
que já me auscultaste e levaste por dentro
deixando a carcaça para os outros verem

os mortais dão-se pelo espírito
ligam-se pela alma imortal
receptáculos vazios como eu só fazem eco
não dão sopros a ninguém
não beijam o ser de quem se poderia transmitir

por isso gosto de agora ser invisível
aprendi a amar o não acima de tudo
mesmo que odeie  a dor e o sofrimento
mas do que seria sair à rua
se não saísse nunca
porque a foice levou-me tudo o que poderia interpretar

para mim e para comigo

A disparidade de momentos é uma loucura
as sensações
as cores que vejo
a vontade extrema de encostar a lâmina
o cano à boca
a corda ao pescoço
a vertigem final e o muito
mas muito
engraçado jogo de pés antes de ir dormir

indiferentes são as comunicações
não para mim
para comigo
o pânico e o medo da falta delas persiste
não para comigo
para mim

é só fazer
só sair à rua
mexer as mãos

o caralho é que é

se é preciso puxar pela cabeça eu tomo-o como literal
sôfrego puxo a minha carroça de nãos e nuncas e afins
enfim que nunca estive só
finalmente estou completamente por mim

não me satisfaz
não é para mim
é para comigo
que todos se fazem de chão

é para mim
é para comigo
que estou aéreo
mas enraizado de dor e farto

segunda-feira, junho 24, 2013

Estória, parte 1

“Podia ser mais grave.
Ao fim ao cabo apenas não sabia onde estava.
Passei a mão uma pela outra, pelo peito e pela cara. Procurei feridas, olhei-me na primeira janela que encontrei para semicerrar um reflexo encadeado pela luz forte do sol. Não, também não tinha grandes feridas na cara. Pareceu-me na altura que permanecia fisicamente normal, só vi a marca no pescoço algumas horas mais tarde. Já chegarei a esse momento. Aliás, não é importante o quando, somente que, a dada altura, dei pelo desenho preto um pouco abaixo e atrás do lobo da orelha.
Visto que estou a escrever em pedaços velhos de roupa, guardanapos e pequenas folhas que vou guardando, não será plausível que alguém chegue a saber de mim, desta história, de como vim parar a este cubículo de onde não saio faz já algum tempo.
Ao 25.º dia deixei de contar, fartei-me de riscar os braços com o único pedaço de vidro que uso para ver o adiantamento das mudanças da minha cara fustigada, e do desenho, da mancha que vai alastrando pescoço fora. Além disso, e como para a maioria das pessoas, presumo eu, sangrar de cortes autoinfligidos nos braços não é exatamente a sensação mais ejaculatória do ser (da maioria).”

Isto fui eu que escrevi, dividido em retalhos como já expliquei. Isto, que eu escrevi, estava transcrito para um pedaço de papel, por ela, à mão.  Encontrei depois todos os pedacinhos onde tinha escrito algo. Ainda hoje não me surpreende que ela tenho conseguido montar o puzzle das minhas memórias curtas, mesmo em pedaços de roupa sem cor, sem tinta, sem nada. Ela conhecia-me, e pelos vistos ficou a conhecer-me mesmo depois de eu partir. A mentira não obviou o que já era por mais real, mais que o ar. Erámos mais que o sol. Mais verdadeiros que a própria verdade.
O que se segue, é exatamente o papel que encontrei e tirei das suas mão frias, hirtas e sem vida. O que se segue cospe claramente o porquê de estar a contar uma história: as histórias por acabar…

“Não é pela tentativa de utilização de mais e mais letras que conseguirei arredondar os bicos desta história. Da minha história. Assim ela não aconteceu, pois o mais correto será que a conte tal qual sucedeu o meu desaparecimento. Sentir-me especial seria um erro grosseiro e crasso, um tapar da noção, a retalhos desde sempre, que a morte é igual à vida.
E embora seja muito mais fácil dizer isto do sítio onde me encontro agora, a verdade é que os que ficam choram-me, ele incluído, claro (por mais que vá encontrando outras mulheres que só consegue magoar), e isso custa-me. Mentiria também se dissesse que não me estremece o estômago saber o que ele faz, o abandono que ele deu a si mesmo.
Habituei-me, porque não escolhi saber. Sei que ele partiu no primeiro comboio a seguir ao enterro. Deu-me como morta, porque assim lhe disseram, porque foi assim que desapareci.
Iniciei este relato com a promessa de não enrolar o que à partida me parece fácil e limpo de contar. Assim o tentarei. Hoje a Senhora D. fez-me pizza para o almoço e em vez da televisão, os meus olhos alcançavam, janela fora, o antigo cinema. Tendo os olhos e a cabeça em recordações, nem consigo sentir o sabor da refeição.
Amava-o  (amo-o) tanto que nem conseguia sabore...”

O coração parou de bater antes que ela pudesse acabar a frase, a história, antes que se pudesse despojar um pouco da dor dos dois. A doença já a tinha levado antes, mas sem a matar. A doença levou-a quando eu a encontrei, antes que lhe pudesse falar, tocar, aperceber-me do seu reaparecimento. A doença levou-a depois de nos olharmos, e esse olhar brilhou mais que o sol, foi mais verdadeiro que a verdade, foi um despojar da dor dos dois, um obviar (tantas vezes usámos esta palavra entre nós, mas nunca através de nós) de que não iriamos efetivamente estar os dois, vivos, ao mesmo tempo, no mesmo espaço. Nem mesmo depois de todas as vezes que voltámos dos mortos.
A última coisa que os olhos dela viram foi o meu braço cheio de cortes, fundos e feios, tal como funda e feia ficou a cara dela quando perdeu a expressão de beldade que acarretou tantos anos.
Após o tempo passou consigo resumi-lo assim, despaixonadamente curto, mas assim é a verdade. Tantas voltas que demos a pensar que um de nós estava morto, e por isso, já não havia sítio para ficar dentro de nós próprios.

O resumo foi o que já vos mostrei, e para mim o mais importante, porque será o único dos momentos em que posso falar dum tempo presente dum passado que aconteceu mesmo. E  é o mais importante porque será o único aglomerado de palavras que descrevem um momento em que estivemos perto, e em que portanto o mundo todo rodou e caiu pelo universo fora, sem gravidade, e fiquei só eu e ela a planar. O reencontro de segundos um pouco antes de prestar contas a Caronte.

segunda-feira, junho 17, 2013

Exclusão

Perdi tudo o que queria fazer
ou seja
deixei de ter algo antes de ser efectivamente quase meu
mas essa é a história
coisas
pessoas
tempo
pelos dedos como areia
um chocalho de cabeça que nunca pensou bem

tudo já foi embora
amigos e conhecidos
as minhas aptidões sociais e o saber falar
devia voltar à primeira classe
para reaprender a falar numa mesa

depois da minha auto exclusão
são os outros que me mandam embora
e quem os julga ?
faria o mesmo
para párias nada menos do que a morte
e com justa causa ninguém se dirige sequer a mim
ou foge mal se apercebe do chinfrim
da casa a arder enquanto olho
o fogo reflectido nos olhos
sorriso sádico de quem só finge
e finge para ter alguém consigo

bastam dois segundos para me saberem de cor
para o disco riscado ser pior do que tijolo partido
(o desinteresse anda com o óbvio ao colo)
e todos já
(depois de terem assimilado o meu ódio)
sem excepção
me chutam em cacos para os tapetes de mofo da minha ignorância e morte

Folhas Ruivas

Correndo
correndo e esperando
simultaneamente com todo o sentido
e como és tu
com todos os sentidos

mas não espero nada
entre o que sei e não sei reconheço muita coisa
o que lá vai
quem já terá passado
o que se irá passar
e assombra-me essa ausência de saber o que fazes

não será a questionar o que sinto que algo mudará
os ventos e as folhas e o tempo de outono nunca mais virá
o meu outono
tu
as minhas folhas ruivas para me deitar
as minhas folhas ruivas caídas que me amortecem
as minha cama de pele
o tornear de tudo o que é teu

domingo, junho 16, 2013

Rimas do fim da vida

Se alguma coisa regulasse
com punho de ferro
o que se passa nestas quatro paredes

porventura eu entranhasse
mas ao invés eu espero
que me apareçam as vontades

se as rimas fossem também reais
e tão fáceis de fazer
como encaixes fáceis de fins de palavras

se eu apanhasse às tais
se eu deixasse de morrer
se parasse de limar para o meu enterro as estacas

o fim da vida é claramente sem ritmo

sexta-feira, junho 14, 2013

Falas só de andar

Tenho saudades de te ouvir falar

como estará a relva que procurávamos ?
os sítios que não encontrávamos para estarmos sós continuam sem existir ?
não quero que me respondas
efectivamente estará tudo na mesma
menos nós
mas quero que fales

pelo que me lembro
e aposto a minha vida em como nada mudou
tu eras música
andavas e tudo o resto abrandava
como um filme
em que apenas tu tinhas uma velocidade diferente do resto
sempre terás
e serás
eras e és música
pelo que não preciso que fales para te ouvir
apenas de te ver
pronto é isso
preciso de te ver
preciso de te ver antes de ficar surdo

quinta-feira, junho 13, 2013

Que se fodam todos

Que se fodam todos
os populares e os acanhados
quem mais respira ou que mais aufere
o que mais ambiciona sem sentido

era morrerem todos duma vez
efeito dominó
ficar só eu
sim

ficar só eu
era bem mais fácil

mas as ajudas têm limites
e pena que não me possa ajudar neste caso
eliminar toda a gente
esfregar-lhes a boca com detergente
calar quem me poderia dar aso

quarta-feira, junho 05, 2013

Humilhação Caseira

Até os de cá
os daqui
o único sítio onde podia ser primata
primário e ordinário
mais do que falso feliz por vezes
vejam lá

até aqui isso já morreu
e eles não são o que eu poderia ser com eles
nem cá já existe essa mentira
e volto a casa humilhado
vazio
apenas com letras juntas e palavras alinhavadas
explicando atrapalhado o que sinto

o que sinto cá já
na minha casa
na minha terra
na minha terra
no meu quarto
na minha terra
eles juntaram-se aos dos prédios

e o que sou ?
miserável
nada muda isso
nem os de cá
floresce com a humilhação
a atrapalhação
a falta de nexo e inteligência que apresento em todo o lado

segunda-feira, junho 03, 2013

bicéfalo

Sonhos de duas cabeças
pensam melhor que um braço
suspiram magicamente como uma acção
se a deslumbrante corrida em que ajoelhados rastejamos
não fosse uma triste rotina de alterações de destino

duas cabeças pensam pior que uma
que uma paisagem não existente
pior que uma rua cheia de lixo
nós
que temos duas cabeças
somos piores que bichos 

sexta-feira, maio 31, 2013

Valsa Menor Sem Amigos

E hoje não sei onde vou dançar
felizmente
queria era tocar
sacar dos dedos uma semi valsa em menor
meter-me a mexer por dentro
completamente chupado de todas as notas
seguindo regras desreguladas de notas
lápis e borrachas que passaram e ficaram
como o som
porque afinal é isso
e era isso que gostava de saber fazer
acima de tudo

Mover-me sozinho
bailando os dedos em teclas e trastes
e pa ra ra
e tu ru ru
e agora mais rápido
crescendo staccatto
como calhar

uma valsa noturna em que os meus três passos são dois
eu e um qualquer espremedor de pele
causador de calos
arrepiador de som

ai quem eu gostava de ser e não posso
um expressador de notas sem valor de troca
apenas espiritual
sozinho
não será essa a maior troca ?
o maior sentimento ?
o que diria eu a mim próprio se um dia me conseguisse exprimir sem lábios ?
nada
morreria no próprio êxtase dos barulhos
das cordas
na ejaculação de mim mesmo até aos ouvidos

ai quem eu gostava de ser e não posso
ser que impressionasse a ele mesmo pela pauta

quinta-feira, maio 30, 2013

aos meus amigos

sozinho
sem discurso
rasgo memórias
bruto que nem um urso
frágil que nem uma pétala
que nas minhas pequenas orelhas me canta a enganar
sem gritos me aflito
e aflijo em boca de alma
do mais sincero do que poderia dizer

além é o que há mais
e aquém ficarei sempre em demasia
e não podia
nunca foi
fui aquele que não fazia
serei aquele que se perderia
perderá ainda mais

a vida foge e as calças são curtas
para as arrepanhar a meia canela
e correr atrás da primeira
alagadas de suor
alagadas de joelhos
alagadas de escarlate flamejante
o que as minhas mãos foram arranjar ?

sozinho a correr
vós todos tão falsos como eu
que me mostro de quando em vez
odiando-me sem porquês
sem condescendente amizade como a vossa

e sozinho ficarei
paciência pouca
mente rouca
corda de estendal de merdas que fui fazendo
e entendo que me odeiem
não que me mintam

aos meus amigos
que não o são
não consigo
fiquem
e adeus

sexta-feira, maio 24, 2013

levar-te a passear

um dia tenho que te levar a passear
e a mim também
que nunca vou
não me levo a lado nenhum
não saio de mim
mas não interessa
quero levar-te a passear
fazes-me falta
e o meu puzzle até é pequeno
mas és uma peça tão grande
um dia levo-te a passear
voltamos a gostar um do outro
porque precisamos um do outro
a gostar como quem ama
como quem precisa
com paixão amiga
vou levar-te a passear
porque precisas de mim e tens a boca calada

quinta-feira, maio 23, 2013

Perto Animal

a única coisa que violo é o teu sossego
mas tu complicas-me a líbido
e sim
podias ficar com a minha complicação
com o meu ódio
com tudo o que pudesse ver do animalesco e grotesco que todos temos
sim cheira a sexo
sim estas palavras são semi roubadas
mas ficam aqui bem

ficarias com o meu isolamento durante uns minutos
com o meu corpo
com o meu tudo

e eu só quero tudo o que trazes
do início dos tornozelos aos recantos do pescoço
animais
mas hey a existência tudo permite
assim como eu sentir-me assim

ausência de promessas
apenas tensão e tesão de alma
"hoje está calor"

que as tuas unhas compridas me arranhassem
ajuda-me
ajuda-me
ajuda-me
como um animal

O Chinaski tinha Mulheres

é isso
o cabrão do velho ao menos tinha mulheres
droga
álcool
e ainda o presente é absorvido pela sua genialidade
mas não quero falar do Chinaski
ele é demasiado para eu o ousar ter na boca
ou nos dedos e nas palavras neste caso

cerveja é bom
vinho faz-me leve
as mortalhas enrolam-se a mesma velocidade que me enganam o sofrimento
às vezes até me fazem rir
queimadas do caralho

trabalhos de merda irão levar-me ?
não
isso são só cartas atrasadas para os predestinados
dinheiro ? para o lixo
qualificações mentais? nulas
a desaparecer a cada passo
terapias não são tentativas

e páginas
almejarei um dia ser conhecido pelas minhas?
não
tenho demasiado amor às palavras para as tentar guardar entre capas
um velho novo versus um novo velho
eu
moi
I

mulheres?
gostaria de poder falar sobre isso
perguntem ao carteiro
que se foda
há-de saber mais que eu
raio de parada de carros alegóricos
numa terra de um cego só
eu
parem de olhar para mim
parem de não olhar para mim

mulheres?
como as cartas
acabadas ou por começar
nunca por escrever

quarta-feira, maio 22, 2013

Maravilha, o caminho.


Gosto particularmente da palavra estanque. Não por saber defini-la de trás para a frente, nem isso me interessa, pois só me interessa a forma como eu acho que as palavras devem significar. Se mando nalguma coisa que seja, no que escrevo ainda é uma delas. E estanque quer dizer exactamente o que me dá a entender, talvez seja do ritmo da palavra, das consoantes. O ritmo, esse, não existe, é uma palavra que automaticamente me faz sentir que algo está parado, empenado, mas que não é uma linha num caderno, mas sim um caderno fechado cheio de coisas escritas. São coisas diferentes. Mas é igual. Estanque. Parado.
Posto isto, clarifico que me parece qualquer tentativa de alcance a algo que chamamos maravilhoso, é tudo menos estanque. A glorificação da nossa maravilha, do atear que ainda não pegou, é real. E dói. E tem muitas cores. Quem sente, diverge, contradiz-se, arrepende-se, tudo na tentativa paradoxal de chegar à comunhão com algo, com alguém. A conta certa é algo com alguém. A minha é, desligando do facto da inexistência de parcelas. O que é verdade pode mudar sem deixar de o ser, e a mentira que o substitui pode ser apenas outra verdade mais pequena, o que faz de tudo verdade e tudo mentira. Nada parado, nada estanque. O amor, o toque, o desespero e o ódio. Quatro interruptores de vivência seja ela onde for, até achar o meu castelo, por mais ínfima que seja a vontade do motivo de sofrer, e cada um tem as suas farpas. Daí que que as coisas mais interessantes floresçam das cicatrizes, das tatuagens,  mais interiores que exteriores. Do sangue escorre e corre tudo, inclusive histórias. E as histórias não são estanques, apenas são o mais emotivo e cativante que numa alma pode existir. A mim a dor ninguém me tira, mas essa é a minha história, como escrever, mal ou bem, ninguém se importa, é uma ferida que escorre. Um caminho para cada, eu espero ter um castelo enublado no fim do meu, mandar-me lá de cima, voltar a subir, voltar a atirar-me. Se não vais, não voltas, se não fazes caminhos, não fazes feridas e nada mexe.
Contra mim falo, não efectuo salto algum.

terça-feira, maio 21, 2013

por fora


exclusivamente as relações pessoais foram presas
o agrilhoamento não permite qualquer tipo de fuga
tipicamente datado e rotulado
ser que gostava de é apenas um limite
um pretensiosismo dos tempos em que já não podemos

aclarando a garganta não existirão denúncias
provocações
eliminações de barreiras
levantadas à volta das oportunidades

a sensação de sensualidade não se mede pela tensão
objectiva objecção de qualquer movimento fora dos carris
comida de recluso no que podias ter
e que não chegas a provar

segunda-feira, maio 20, 2013

Estômago/Panico/Alma

pânico sobe sobre o estômago da alma
arrotas a só
cheiras a um qualquer elemento corporal que não tem propósito
o estômago da alma
lá passa-se fome
cordas
letras
e forjas saídas que não serão viáveis
porque só as imaginas
se tudo o que inventasses fosse verdade
já tinhas um compêndio de felicidade
ao invés de um dicionário de frustração
por dentro não respiras
arfas que nem um cão
cortado ao meio
no meio da estrada
meio morto meio torto
sangue espalhado
pêlo
pelo
asfalto
um assalto com miolos nas paredes de toda a gente
menos as tuas que só te fazem morrer todos os dias

Armazém Esgotado Por Demolir


O stock encontra-se esgotado
a publicidade não sai cara
é o crer em criar que não nasceu
ajudar a estabelecer-me nunca foi um objectivo
não vou aparecer no topo da cabeça das pessoas
nem na minha
se era esse o primeiro passo
os registos mostram que as coisas acabaram
e que as que ficaram perderam a validade
o meu armazém não faz sentido aqui e vou arruiná-lo
sim
ok
já está arruinado
mas fisicamente não
vamos lançar-lhe andorinhas com bombas
sacrificar várias belas para me destruir o espólio
e uma luz que nunca se vai apagar vai surgir
já que com tudo a funcionar as coisas são escuras.

domingo, maio 19, 2013

solidão em prosa pequena

a solidão não se baseia numa princípio estanque de não estarmos na companhia de alguém, fisicamente e em proximidade conversacional. acrescento também um calor, mera chama amorosa ou de paixão, que nada são parecidas com romantismo, dado que este não existe e nem descrente se pode chamar. nem vale a pena abordar a questão sexual, que todos já foderam sozinhos pelo menos uma vez. 
simplesmente nunca existiu essa noção de romantismo.
amanhece e provavelmente sinto-me só. mas não por estar sozinho, ainda agora olhei o rio e o céu a apanhar cor e sorri. nesse pequeno movimento terrestre não estive sozinho, apenas depois de baixar os olhos.
o maior problema acaba por residir na indefinição que tenho de qualquer conceito. nem a dor que sou eu consigo explicar como sendo uma coisa de entender. não sei o que ando a fazer. a solidão não se pode alicerçar num princípio estanque. eu nunca paro em correr nos nervos e transmissão ao topo. 

terça-feira, maio 14, 2013

Frio e Sol


calor esfria-se com o cessar da luz
é bom
escuridão sempre foi mais propícia a falsidades
ao calor faz sol
e pelo meio de tanta coisa
tantas florestas tantas ervas tantas alterações
o que volta à noite é sempre escuridão
dor
não ter
não ser
uma aberração inegável do que deveria ser alguém
o sol que odeio é o mesmo que me esconde afinal

segunda-feira, maio 06, 2013

Sala de estar em forma de coração


disse que nunca mais iria ver as tuas unhas cravadas em flanela
não vou
mas hey
espera !
tenho uma reclamação
nunca mais saí da tua caixa em forma de coração
imaginária claro
porque é da minha que nada sai
a canoa imaginária que espero com água pelo pescoço
com peixes em gangrena a boiarem a volta
podia comê-los por ti sabias ?

uma vez tive um amigo
que roubava palavras aqui e ali para tas dar a ti
que quis mais do que podia dar

ele contou-me em segredo que nunca te vai dizer o que tu queres ouvir
porque ainda gosta
e não quer escudos para se proteger
mas ao menos fez-te crescer pintar e montar o teu lugar
agora estás bem na tua sala de estar
por ti

365 dias (ou quase)


está a rondar o aniversário de uma brincadeira de crianças
há coisa de um ano via-te atravessar a estrada
lembro-me de pensar como não eras só bonita
mas simplesmente uma das coisas mais atraentes que já tinha visto
a forma como andavas limitou-se a confirmar esse facto
a roupa que trazias apenas o fez brilhar

vinhas ao sol
depois ficou vento e meio escuro mas eu não vi
sempre foste só sol

mesmo a páginas tantas
a cultura que nos abraçou não me cegou
apenas tu
quando era impossível não fechar os olhos
tão perto estavam as nossas caras
e o resto

olhando para trás lembro putos a correr
gelados granizados livros e círculos russos
estômago revirado eu em espera
em pânico a medir cada palavra
e as 300 mil formas de as conjugar

de agradar


365 dias ou quase
já passaram
não me passou 

sábado, maio 04, 2013

Caçador parte 2: Medo e espaços e pessoas


Acagaço-me todo com gente
espaços e multidões
existem demasiadas oportunidades de tudo
provavelmente e certamente de felicidade
porra
do resto tudo também
não?
acho que sim
é demasiado para mim
tanto hormonas como lições

vens para mim
vens por mim
vens para aqui
e ficarei cego
e será que cego terei sonhos?

questiono-me se neles existirão memórias destes medos
se existirão fodas em segredo
ou alguma coisa que me puxe de volta do lado de lá
do pano
da falta de
do excesso com

Caçador parte 1: Veados

quando for grande quero continuar a caçar coisas belas
paridas pela natureza
que corram ao desdém pelas penumbras
e pelos pântanos
com merda pelas canelas
até
com cinco dedos bem separados
me atirarem um adeus
fugindo com hastes gloriosas
fugindo de capturas manhosas
à procura de nenúfares onde não cabem cascos
mas se seguram no líquido
são melhores que a penumbra
empiricamente falando

Não vou descobrir nada
mas a espingarda está sempre pronta
felizmente que as coisas se tornaram difíceis de abater

até a lama me chegar aos cotovelos
até a lamúria de floresta escura
que já me encravou a culatra

quarta-feira, maio 01, 2013

morrer afogado


Isto já não chega
nem as modernices nem a criancice
ou as falcatruas que vou diminuindo
já não tenho vergonha ou pejo
a facção de “um bocadinho menos derrotista”
caiu ao virar da praia
ao lado
nas rochas bicudas em tempo de papa terra
água por todo o lado
sempre tive medo de morrer afogado
principalmente sem ser em água
mas nota-se que apenas arfo em vez de falar
regurgito e não opino
não vejo quem está à minha frente
sôfrego se escreve e se anda e se respira
mas o pânico também já chega
e as modernices e esta merda toda

nem os amigos nem a noite


a mocidade fugiu-me
escorreu pelo umbigo
não parou
não havia nada em que tocar
onde devia haver peles
suores mútuos

esta barulho aqui
estamos com os copos
não estou aqui
e se amizade
fiel casamenteira de sorrisos
não me alegra
nada o fará

faço fumo sozinho
sou o único aqui não aqui
não nada
nada além da minha própria inexistência
no conceito de feliz
do qual não tenho dicionário

nem os amigos nem a noite
durante apenas estas letras
no caminho apenas sal molhado a tentar explodir
 ninguém se vai vir
e um vã desistência volta porque nunca caiu em sono

sábado, abril 27, 2013

Eu e o calor - I II & III: comboios, animais e ódio


Um potro a correr dificilmente equivale comboios
as carruagens passam e
no máximo
brincamos nos carris tipo salta pocinhas
ou outra expressão maricas que o valha
está sempre quente assim e aqui
e os verões escapam-me pelos dedos
principalmente aquele que não suporto
todos
a areia veio-me para os olhos e passei a odiá-los
como odeio espelhos
tudo faz sentido assim
só espero que não me acabem os comprimidos entretanto
porque este potro corre em corpo próprio
sem espírito ou entranhas

mais merdoso que o calor só o pré-calor
a ânsia de felicidade que socorre toda a gente
não me traz mais do que vontade de não deixar passar o comboio
com o meu próprio dorso pequeno e pernas que não andam
ouço chamar da cama
morro de sorte
morro de amor
temo e tremo pelas patas abaixo
mijo-me pelas patas abaixo
desejando que esse ácido fosse eu
dissolvendo-me até ao chão
até ao último casco

a partir daqui sou um porco espinho
uma árvore de pontas
semente amorosa de ódio sediada na raiz
odeio o sol
o calor
a água
odeio o meu corpo porque não tem espinhos que o escondam
já não sei que animal sou
apenas que como humano já não existo há muito
um potro com espinhos com dor de pessoa
e alma que faísca nos carris
e vai arder com o sol
combustão até à exaustão
até a terra me comer
come-me já oh planeta
que não valho as silvas que piso

sexta-feira, abril 26, 2013

palhacinho, parte 2: número do pescoço e a corda


não lhes chamos poemas
são palavras
palhaçadas de quem não tem nada para fazer
literalmente
um palhacinho de lágrima sem piada e flor

já me rendi a mim próprio
era tudo ou nada
e nada
nada para fazer
atribuir um nome é simplesmente estúpido
são letras que formam palavras
são palhaçadas
pois para quem a vida não é nada
dificilmente se encontrar algo mais fácil que se incomodar quem é vitalidade
até à exaustão
não regressão
até me odiarem

as pessoas têm vida
trabalhos
conhecem pessoas
têm piada
têm sexo
amigos
conhecem pessoas novas todos os dias
tu nem  todas as décadas
têm-se a elas próprias
não tenho nada a ver com elas
que vivem

corda
número irrepreensível
aplaudam por favor
é o número do pescoço

serrar os dedos

vou cortar os dedos

as fórmulas drásticas
redundantemente
são as eficazes
e assim resolve a questão pela raiz das pontas dos ramos
sem extremos nas mãos não escreveria isto
ou falaria contigo
porque
mesmo merecido
seres-me  a coisa mais bonita de todas as coisas
enquanto és o que mais chama para me queimar
é incalculavelmente berrante no negro

que culpa tens?
nenhuma

vou serrar os dedos
bem devagarinho

porque se as palavras são o que ouves
eu não quero falar que me lembrei
que te matei o peito sem limar as unhas

o que mais me passa na testa
o que mais me dói no estômago
a ambiguidade é rápida de mais
para a ausência da minha falta de controlo

volta aqui e tira-me a serra antes que seja tar…

quinta-feira, abril 25, 2013

palhacinho

avermelhasses tu o nariz
de certeza serias um brincalhão
agora assim
sem adereços
sem ser a tua fraca figura
és apenas um palhacinho
e nem gostamos deles
um dia explicamos quem somos
já o prometemos
basta saber-se que não gosta de mim nem de ti
e eu igual
somente palhacinhos
sementes de ridículo num mundo que é tão mais pior
que prepotentes por sermos tão importantes
(para nós próprios claro)
mas se te queres sentir assim
deixa-te estar
tem dado muito trabalho fazer-te sequer tentar
como uma bolha
um tentar guarda-chuva
não almejas um caralho na verdade
deixa-te estar despintado
continuas a ser um palhacinho imundo e triste
metes pena e metes nojo
e não metes nada no mundo que seja útil
já pensámos em cortares o pescoço ?
deixa-te estar
eles que se riam e engana-te e pensa
que se riem para ti

quarta-feira, abril 24, 2013

ainda falta tanto


abandonaste os outros
antecipadamente por leres nas mãos
que eles te abandonariam a ti
ou assim pensei
já não sei se usar um dado adquirido é batota ou não
e se sendo se pode chamar adquirido
mas é certo que foi assim
é assim
não vale a pena discutirmos
fizeste de propósito
como nos manda a nós o ser
nada mais somos do que velhacos gastos pelo tempo que ainda falta
e tanto relógio que ainda falta
que por elas já nem damos
se nos dói
se dói por doer
as duas dirás
concordo porque não me apetece pensar muito nisso
dói

casamento sem


Impassível face ao apocalipse
lógico
era tão anunciado
sempre o foi
vou-me por em aventuras
nunca fui disso
e agora uso este verso para rimar com amarguras
como se já não emparelhasse com o azedo
de aliança e tudo
para sempre e até ao fim dos nossos dias
mas sim
mas sem
com meias palavras torna-se complicado
principalmente com afirmar
é insustentável
agora sem
sem é outra história
porque a falta de
é sempre a história

e então adeus


é uma espécie de amor
e então adeus
mas como é que vives assim ?
na toca
no buraco da árvore a que chames por ti
para ti
a que chamas tu
muito gostar do outono isso
de ser sempre desfolhado e amarelado
cor de merda
não te esqueças de espreitar amanhã
antes que te apanhes
pois mal te agarres
acabaste
e então adeus

segunda-feira, abril 22, 2013

não me falem


não me falem
ou esperem que diga algo
nem sorrir

aguardem por cantares
de que não saí de casa
ou eventualmente alguma vez saído de mim
a bizarra rotina de acordar abraçado a meus ossos
a braços com os meus olhos
que rebento com as unhas

não me olhem a pele
a menos que se goste de um pouco de tinta
que não engana ou finge ser libertina
do calhau seco que só afirma

aguentai um momento por minha forma
mais verdadeira
seca
e suja
não poderia ser
continuarei a ser fiel a quem me raptou
e a incessante e caminhante foice
ceifando-me todas as faces falsas
e agora não resta nem uma
só a nua e crua
incandescente vaidade de fel e maldade cristalina



sábado, abril 20, 2013

Umbigo, desprezo pelas estações do ano

Calor é imundo
sai imune  a pele
todo o complexo de não querer
nem a luz nem o sol nem as pessoas
apesar de aparecer e parecer loucura em todo o lado
não quero e não deixo
pois não consigo
e só o meu umbigo
atrai a minha triste atenção
triste intenção
infligida por outrem
ficar sozinho
primavera

terça-feira, abril 16, 2013

Feira do Livro-me de ti


Enquanto as palavras forem o meu único refúgio
as pessoas cada vez mais alérgicas ao meu enfermo
e a minha falsa simpatia seja um granizado
adocicado que se derrete nele próprio
num estalar de dedos
enquanto assim for
continuarei a passear entre as bancas
entre as páginas
os vendedores de almas
do meu espírito
as guardadoras do que já foi o meu prazer
anestesiadas pelo fim da ilusão
passei e ignoram-me
sussurram-me
“livrei-me de ti”
gritas-me
“livro-me de ti aqui e agora”
e merecida é a forma
se no prato oposto vier a (minha) falta de conteúdo
ando e ando pela feira
bancas, páginas, pessoas
todos cravam os olhos na minha roupa e sinto-a a queimar
e com ela os pelos um a um
a seguir virá a derme
continuará a feira física que de alma estou despojado
“livro-me de ti”
arrancas-me de ti manejando-me como mais um item
sem sabor especial
sem feliz final
apenas a corte que te deliciou
e os cortes que te abriram as retinas
pelo que o único pedaço de espírito
são enfim
as reminiscências ao segundo do meu existir não se livrar de ti

domingo, abril 14, 2013

Arte&Eu


A preto e branco, a cores, sempre gostei de filmes. Leves ou pesadas, sempre gostei de letras pretas em papel branco. A adoração não tem como norma o efeito, e nem sequer o sentimento positivo que possa parecer a priori. A arte tem arte de me fazer sentir vivo, fazer rodar as engrenagens, nem que seja para me sentir vivo, mesmo continuando a não viver e ter medo disso. Alimenta-me o medo de cessar mesmo pensando nisso a toda a hora. Dá-me ideias para combater o desespero, ideias essas que se tornarão também frustradas e desesperadas, mas que no momento em que nascem são pequenos enganos que alimento por dentro. Chamem-me indulgente. Não o sou em perdoo, apenas em complacência e hipocrisia.
                Ter com que filmar não nos faz cineastas, ter uma guitarra não nos faz músicos, ter mãos não nos faz escultores, ter palavras não nos faz escritores. Isto tenho como certo, e uso-o sem vergonha para explicar que não consiga explicar como quero, quanto mais cativar. Ter-me e ter com o que trabalhar-me, não faz de mim ninguém.
                Agora é um momento pós-arte. Uma daquelas ideias que já falei, o milionésimo planeamento para o meu aparecimento. A minha vida não é um filme, antes fosse. Afinal de contas só desejo o simples: saber fazer algo, ter alguém que me passe a mão pela face, que me olhe e das minhas vistas saia uma luz que confirme a minha satisfação com os factores que já apontei.
                E se esta é uma das tais ideias é também um conjunto de letras, um molho de palavras que não consigo usar de forma fluída, ousada, bonita. Uma coisa que eu gostasse de ler.

sexta-feira, abril 12, 2013

Conclusões de retina e rotina


Não querendo ser faccioso
admito
que odiando o sol e o calor
existem dias que ficam menos feios
por obra dos supra citados

os pássaros cantam
neste quarto só existem borboletas
quer dizer
dentro de mim
no quarto além de mim
só existe o cheiro a podre

a inexplicável sensação
de se ser incapaz
e incapaz de se explicar a sensação
toma conta das vigas do corpo
e assombraria a personalidade
se a tivesse

Olho em volta e vejo tudo
nos reflexos não existe nada
frustrações imortais de sons e palavras
desejos carnais de enfiar coisas na pele
no corpo
até espremer toda a vida
e a saciar a vontade de destruir tudo o que me passa pela retina

a conclusão não é famosa
não muito mais do que se para lá não fosse precisa coragem
e os desejos sensuais de morte e corte
testar a pele e os ossos
e quanto sangue escorreria
e saciar a vontade de parar tudo o que eu gostava que fosse rotina

quinta-feira, abril 11, 2013

A sair do metro


O betão exterior
tão belo sendo ele a nossa época
é urbanização que se respira nas entranhas
enfiou-se nas pessoas como lombrigas
estou a sair do metro
sem rumo
com a cabeça completamente cortada do pescoço
ao parar reparo que só eu paro
a manada conluie-se
pisa o mesmo chão
e a marcha e o ritmo da batida
tudo me fode a testa
eu vou só sair
mas para onde?
questiono cada cara cada vida
quem serão estas pessoas ?
porque só eu parei ?

quarta-feira, abril 10, 2013

A quantas ando / James em Trieste


Ela
Eu ?
Eu nem sei a quantas ando
quanto mais a quantas andas

Eu
A noite é terna
e talvez isso ajude a atenuar a exaustão
facilmente a vida se torna vendida sabes?
a tua não
és música
mas a minha é entorpecida
e silenciosa desde que perdi a calma

Ela
Podes vir
há uma cama na entrada
longe

Eu
Sei rapidamente a quantas ando se me falas condescendente
a mecha ateia e fico sempre a ferver
e não vale a pena acreditar
já passo a vida a ver vultos que nem os sei distinguir do que é
não me convides a ver mais irrealidades…
Não tens nada para me dizer e eu tenho tanto para te contar
que uma conversa seria desocupada
A noite é terna
mas é escura
Se algum dia fores a Trieste
vai falar com o James
gelado negro e quieto como a noite
a mesma a que ele chamou a terna
pode ser que ele sim saiba dizer-te o que é o amor
e como a riqueza dele está na pobreza de explicações
pode ser que ele te explique como a noite é terna
macia
calma
como tu
se um dia na tua vida parares à frente do James em Trieste
pede-lhe para te falar nós

segunda-feira, abril 08, 2013

Coração, Vermelho, Luz


Mesmo não tocando coisas negras
gritem a agonia que gritarem
todos imaginam que ferir um olho cega
o coração como conceito hipotético
pelo qual nutro a maior das considerações
é a vista que ferida não vê mais que a luz em baixo da porta
e se isso não importa
não sabeis por onde viver
e que essa luz salvará.

Não sei quais são mais tristes
se os que vêm a luz ou os que a deixaram fugir entre dedos
sem ter espirito para encaixar tamanha liberdade

Eu sei qual deles sou
e as luzes torturam
imagens persistindo do que foi e podia ter sido
vermelhos e escarlates do insucesso vascular
poderia dizer
mas seria falso
são mesmo vermelhos e escarlates
de sangue
de saudade
ver sem ver
não conseguir esquecer

e
reduzidas as hipóteses de lutar
serão mesmo só vermelho para recordar
que todos temos de aprender eventualmente

domingo, abril 07, 2013

Identidade


Sou em mim uma ilusão de párias
sugando a quente o queimador fervente
ligando em veias a dor escaldante
cosendo unicolor o ser demente

identitária luz do aquém lidar
do saber espécie e do não saber poupar
aos outros e a mim a dor limar
aquém de mim ninguém ajudar

transformarei aqui ainda mais parasitas
cor de fogo e dor tudo
lago seco no fim do mundo
correntes de nada num nascer sem fundo

terça-feira, abril 02, 2013

Campainhas Gasolinas


Trim Trim
Olá
Eu sei que estou sempre a tocar a campainha
não me impeças de chamar a mim o foco
já que o enfoque é só queimar vivos
só digo isto para não causar choque
para não dizer morte
chamar a porta com um dedo na campainha
com a outra mão já cheia de gasolina

fósforo.
atenção que vem aí o fósforo.
irra que falhei a mão

não acharás que me falta pontaria
mas sim excesso de ridículo

concordarem comigo alivia-me o cheiro a inflamável
diluente que me negra os olhos
impede de respirar
rasga tinta por cima de tinta por cima de máscara repintadas como um colibri

Traqueia, Vidros, para baixo...


Já não sei por onde me perder
o que partir
o que espetar no estômago
de que pedaços de vidro a minha mãe sentiria mais saudades
se os levasse entalados na garganta

Partir tudo apetecer-me-á
e amanhã também
quando acordar e vir que continuo com o prato limpo para a aveia

E depois ?
A carteira abrirá à procura de apenas causar mais dor
ou a ansiedade acaba em cucos ?
e os vidros em cacos
pelo corpo abaixo
a expeli-los inerte

Inveja-Morte-Sorriso


Embriagado com desuso e sede de roubar. Roubar sonhos dos outros, tudo dos amigos. Cego de inveja, de luxúria, de cobiça pelo intangível, com raiz na encenação diabólica de não ser assim tão tão. Mas tão tão ? Sim, tão tão… Apenas mais um orgasmo fingido, um mole e repelente enxerto de inércia e pele num não corpóreo tão odiável.  Inclinação constante do cansaço do mal e da morte, da vida e do filho da puta do sorriso estático, amarelo, queimado e cosido, bem devagarinho, com agulhas ferrugentas nas minhas bochechas. Todas as doenças possíveis, todos os contactos neutros. Mentiroso, todos os contactos nulos.

Punkietude


Inquietude que me estraga a digestão
alimentada ao ouvido por chinfrins
atestados do que criaria
puro e duro
modernices alimentadas a suor
a cerveja
e dedos ensanguentados de arrancar pele aos dedos
de crescer urtigas nas unhas

junta-te e vamos
até estragar
até partir
tentar deixar de ser velhos
içar a tesão da dissonância
concordância da distância entre o que excita a gente
toda a gente
inferno e barulho

segunda-feira, abril 01, 2013

Privação/Não

A privação de ter almejo retira-me o estofo para dormir.
A privação do sono retira-me a vontade de sonhar.
A privação do amor próprio faz-me sonhar acordado.
A privação da realidade retira-me os toques.
A privação sensual relembra me a privação do almejo.
Não ter sono não é dormir.
Não ter sono não é foder.
Não ter sono é não saber equilibrar as contas.
Não saber parar o não.
Não saber o não.

Nervos


Estou em nervos
não por algo em específico
meros mexericos e espasmos mentais
divisões maniqueístas egoístas e falsas
esventrando o conceito

Sem palavras rechonchudas
digo
parece é que me estão a esventrar a mim
os nervos são uma correria tresloucada

Sem frases dóceis
e tacto
para a alma e os braços
deixei de arrendar os espaços
e os parcos laços em que ainda me enrolava nos olhos

Volúpia desaparecida
tristeza admitida
andar das carruagens que já só levam quem andar em frente

sábado, março 30, 2013

Ratos


Tentei fazer amigos
acompanhar
fazer sentido com tudo o que saía da minha boca
mas fugindo

Comprimidos e sonhos sortidos
realidades criadas
raízes de dor inventadas e ratos moendo a cabeça
roendo as orelhas
desfazendo em sangue tudo o que é físico

Morto ou vivo a razão é silenciosa
morto ou vivo ou meio termo
roubando o fogo mas para aniquilar a humanidade em minha
ratos a comerem-me em vez de águias
sempre a deturpar mitologias
mas a ir
pouco e pouco
todos os dias

Tentei fazer amigos
dar lógicas aos sentidos
engatar-me a mim próprio
mas o belo não é agradável ou não
exterior ou interior
define-se apenas pela capacidade de controlar a dor

Feio.

terça-feira, março 26, 2013

O Rei vai nu

É isso
por mais que conte o arbítrio
e tente irremediavelmente dar-lhe uma dose de sorte
a questão torna-se como as minhas usuais formas
antagónicas por serem de fácil uso para mentes fracas

sensações percorrem-me todos os pelos do corpo
uma libido para lá do sensual
tornando o simples sangue ordinário
e atesta-me a febre de não resolver

nunca destinar será também uma arte
se delas não sou pródigo
e da inveja também se ferve leite

a nata da solitude está na cobertura que caiu
aquilo que toda a gente viu
o rei vai nu mas vestido nunca usou coroa

Dirigível


Não consigo tirar os olhos do céu sibilante
(a palavra não é das que mais uso, nada curioso)
Não desmoronarei tão rapidamente o dirigível automático
A aceleração cada vez maior das pessoas
dos relógios e das fronteiras
a minha solidão potenciada ao afastamento humano
tal maneira que os sítios mais humanos conseguem ser artificiais
nos naturais a vida que passa é morte
aprender a voar
aprender a não ter medo de preocupar


Canoa


largas se tornam as voltas
e as revoltas
e as notas
o preço de almejar sempre o corpo

sei que sou eu mas não sei se a culpa é minha
ela e a sua história
a minha perdição por marcas e cicatrizes
tatuagens do que passou
do cliché das lágrimas em industrial
suor
sangue
sexo

desmesurado e enamorado por nada palpável
que torna o torneável uma perdição
a criação de uma luta arranhada
que se perde em juras e depois em dor

enrolada em arame farpado és um livro
só essas páginas me interessam
tesão macabra por quem anda quase em tantos carrosséis como eu
irracionalmente o desconhecido não me afasta
aumenta e faz crescer a ansiedade pela vida que não existe
tornando-o apenas o que há para viver
e essa cruzada em vão lembra-me o desgosto
desilusão continua e embarcada
numa pequena canoa parada num rio que secou
comandada por um cego surdo e mudo

sei que sou eu mas a culpa não é minha
ajuda-me e repela-me de mim próprio
quer fugir desta forma

se sou eu a culpa é minha
não é dela
não pode morrer sozinha
a culpa

ela ainda nem vive mesmo que me chame

sábado, março 23, 2013

Retrato


Está sentado. Parado. Porque todos os movimentos que faz são representados por réplicas em vulto de si mesmo, que passam como espectros por ele. Por dentro dele. Pelo estômago, pela ausência de alma. Como fantasmas. São clones e falsos movimentos de alguém que não se mexe, de uma imagem que não vê, e que por vezes se entretém com essas sombras.
Está só.
Permanece no mesmo sítio há tanto tempo que lá fora parece-lhe uma imensidão do inalcançável. Com jeito será mesmo assim, e as paredes parecem à prova de fantasmas. Sempre.
A vidraça da sua casa dá-lhe a vizinhança da inveja que os outros lhe provocam, aqueles que, a seus olhos, alcançam o tal. Algures, em alguns dias, caem-lhe fotografias nas mãos, de um homem sentado. Caem fotografias nas mãos de um homem sentado. Chovem retratos de imaginações de inércia, replicadas contra paredes de osso.
Sente-se enjoado, como se lhe fossem dados a comer todos os retratos, como se a papel químico todas as suas opções (uma opção: estar sentado) fossem (e são) erros contínuos. Disfunções apenas separadas pelo andar da idade. E o que o andar da idade lhe dá, tira em compensação dos ponteiros, que não param.
Enquanto olho para ele, a poucos centímetros das suas mãos, ele continua sem reparar, e os espectros atravessam-nos a espinha sem perdão.

quinta-feira, março 21, 2013

Azedume

Mesmo que só debaixo da lama me venham as palavras
E que eu pare pouco para as encarar
Mesmo que essa lama seja minha
E eu me importe mais do que pareço
A verdade é que me deixaste azedo
Mesmo que eu não queira

Mesmo que espreite
Só o teu nome dá-me náuseas
Mesmo que chute a vontade embora
Alimentas-me o ódio só por existires

Não sei o que é o ódio
Juro-te que não sei
Deverá ser algo como isto que causaste propositadamente

Mas se foi terá sido só da tua mente
Que da boca nada infernal se avistou
E espero que esses lábios ardam eternamente
E os dentes se comam a eles próprios

terça-feira, março 12, 2013

Perguntem-me do que estou a falar, cinco, Eu


Umas férias são sempre benéficas. Muito mais se não forem solarengas ou bronzeadas a loção de falsidade. A liberdade define-se não pelo que queremos, podemos, fazemos, mas antes pela própria noção de ela ser livre e não a conseguir controlar. Arrisco-me então a adivinhar livre como a ausência de controlo, atirando assim à definição o seu oposto para a definir. Parece-me lógico.

O regresso é que pode ser, e convém que seja, para bem ou para o mal, mas mais para o mal, atribulado. Muito se puder ser. Cheio de buracos.

É assim que me encontro depois de férias, na ladainha de um infinito conjunto de liberdades que não quero que me pertençam, ainda que sejam as minhas mãos, ainda que, eventualmente, sejam as minhas mãos, ou mesmo até, exagerando, que seja o meu controlo sobre as minhas mãos. Ou a falta de.

Não é ?

Regressei branquinho como fui.




terça-feira, março 05, 2013

Conto


Sentou-se na cadeira onde se deixava descansar todos os dias, enquanto sentia uma ansiedade desmesurada na barriga. Passava os dias assim e as noites não eram muito diferentes. Costuma dizer para si próprio: Porra, isto não são borboletas no estômago, são abelhas. O problema é que ele nunca entendeu o porquê de se ferroar a si próprio incontrolavelmente. Nos anos de miúdo, a época de meio miúdo, meio adulto, e mesmo agora chegando a homem, a incompreensão era-lhe instalada no sangue a cada beliscão interior, como um comboio pontual a apitar por dentro. No entanto, esta noite era diferente - como seria de esperar do fim do dia em que se tira a vida a alguém pela primeira vez. Naquela noite a música estava calada, nenhum livro fora da prateleira, apenas o seu ser desarrumado, e os ouvidos embalados pelas gotas de sangue que caíam cadenciadas no chão do quarto, saídas daquele pau arrancado à pressa para fechar os olhos ao tipo que tinha ficado estendido no chão, fora de tudo. Inevitável, pensou. Cada um tem o que merece, mesmo que não se saiba muito bem quem decide o que se merece, e quem é digno de quê. Já era de manhã quando a garrafa de Jameson e os cigarros acabaram. Reviu, releu e pensou tudo o que tinha acontecido horas antes. Apenas há 2 meses na cidade, ainda tinha por hábito conhecer ruas novas, bares novos, descobrir onde paravam as melhores putas e se vendia a melhor erva. Na altura, pelo que se lembra, já que os raios da manhã teimavam em queimar a linha lógica das ações projetadas na testa, estava a dobrar a esquina do antigo cinema. Achou piada ao cinema, que tinha em exibição Leon, o Profissional, do Besson. Ia entrar para ver o filme, até ser abordado pelo agora falecido. "Passa para cá a carteira se não queres que te esventre com esta navalha, caralho". O ladrão não era muito maior que ele e lutaram, até ao impagável momento em que olhou o chão e viu o pau. O passo a seguir foi rápido no passado, mas era agora lento na sua ideia. Via tudo em alta definição, a madeira seca a atingir o ladrão pelo maxilar. O sangue. O gajo no chão. Encostou o ouvido ao peito do desgraçado: nada. Estava morto. Fugiu. Foi esta espécie de filme macabro que viu no escuro a noite toda. Tentou abstrair-se da situação e a ideia que o absorveu foi a ausência infantil de ação por parte das pessoas que estavam naquela rua, naquela hora. Tinham partilhado com ele aquele momento e eram seus cúmplices. Mas aqui a palavra cúmplice adquire um significado estranhamente amplo. Pensou, estava o velhote da bilheteira do cinema, a senhora a fechar o quiosque de livros antigos e tabaco, um casal de namorados a sair do museu de arte e a peça mais intricada do puzzle: a rapariga de casaco preto e calções de ganga, uma vestimenta neutral dada a meteorologia mediana e insonsa, que fumava um cigarro com um pé encostado numa das paredes do cinema. As pernas foram a primeira coisa em que reparou, como eram bonitas e como ele gostava de pernas. Numa ocasião normal teria chegado a casa, bebido dois ou três copos e ia para a cama masturbar-se imaginando tudo o que poderia fazer com aquele corpo. Estava novamente perdido na imagem da rapariga quando se lembrou da conclusão a que estava a chegar: cúmplices. Ninguém mexeu um dedo quando repararam que ele estava a ser assaltado, atitude coletiva que não mudou quando o assaltante jazia estendido, lívido, sem respiração, com a cabeça a mijar sangue devagarinho para a sarjeta da esquina da rua do cinema com a avenida principal. Ao fim de uma hora de luz desistiu involuntariamente, mas todas as suas reservas estavam esgotadas, mentais e físicas. Dormiu até tarde e não sonhou com nada. Quando voltou a abrir os olhos sentiu a ignorância e rabugice do despertar, o que lhe trouxe felicidade durante os vinte segundos que essa sensação durou. Rapidamente voltou à realidade e, sóbrio e com a cabeça menos fervilhante, foi assolado por todos os possíveis problemas em que ainda não tinha pensado. Não que fossem rebuscados, eram até os mais simples. Matei, polícia, preso. Estas três palavras eram pequenos barquinhos de papel na corrente de incoerência que ainda toldava o seu raciocínio. Matei, polícia, preso, matei, polícia, preso, matei, polícia, preso. Por mais que tentasse formar uma pequena frase, estas três pequenas palavras voavam livremente no crânio. Como borboletas. Como o seu estômago. Tinha a boca seca e sentia fraqueza de fome. Sentou-se e ligou a pequena televisão, comprada em segunda mão, que tinha numa pequena mesa de fabrico escandinavo (que custam poucas notas), em forma de paralelepípedo mas oco, com aberturas de lado, onde tinha entulhado um monte de revistas e livros, ao acaso. Tinha a boca seca e voltou a beber água. Não conseguia olhar diretamente para as notícias, não conseguia comer, só beber água. A boca secava-se ainda mais no espaço torturador entre cada notícia. Tinha a certeza que a notícia iria surgir. “HOMEM MORTO VIOLENTAMENTE EM FRENTE AO ANTIGO CINEMA. TESTEMUNHAS IDENTIFICAM X COMO O AUTOR DO CRIME”. Fumou um cigarro e só aí conseguiu estabelecer uma linha comunicacional dentro de si próprio, mesmo que irrelevante para o caso. “Foda-se, foste esperto em ter comprado 10 maços de cigarros”. Sorriu. Era do seu apanágio elogiar-se a si mesmo por estes pequenos momentos de génio, para a seguir ficar envergonhado por o ter feito. Achava-se fraco e patético, com necessidade de se bajular durante um par de segundos para depois cair em si, e na triste figura que teimava em fazer perante si próprio. Três segundos. O sorriso desapareceu. Estranhamente o dia desenrolou-se sem ser noticiado o assassinato que tinha cometido. Intrigou-o mais do que lhe deu descanso, o facto de não ter sido aproveitada por um qualquer meio de comunicação, uma história tão boa como um zé-ninguém morto a paulada numa esquina. Teria que aparecer em algum lado, eventualmente. Numa altura em que tinha já abertos todos os sites noticiosos de que se lembrou, combinou uma coisa com ele próprio: se ao fim de dois dias ninguém o viesse prender, ou se nenhuma notícia aparecesse, aí sim sairia novamente à rua. Era já fim de tarde de quarta-feira e sairia sábado, se nada acontecesse. Deu por si numa nova encruzilhada. Sabia que não queria ser apanhado, mas também não queria sair à rua. Dado que os seus graus de satisfação e ansiedade não viviam a modos de nenhum fiel que os equilibrasse, o tombo do desespero levou-o a sentir-se em apoteose. Estava nos píncaros de si mesmo, mas sentia-se fora da realidade, quase como quando, por pura gula mental, olhamos uma palavra, um conjunto de letras, um significante atribuído algures pelo caminho, e olhamos obcecadamente até a palavra e todas as suas letras parecerem irreais, simplesmente traços. E passando dessa forma a realidade, sentimos que a nossa cabeça vai explodir, por racionalmente a termos esgotado a olhar de forma psicótica para letras e palavras. Sentia-se assim, como se a sua vida estivesse num limbo entre o ser e o imaginar, ainda mais do que tinha sido todos aqueles anos, em que se sentava e criava a irreal realização de todos os seus sonhos, sem nunca depois fazer por isso. Não conseguia dormir na ânsia de conseguir ler, ver e ouvir todas as notícias de todos os meios que estivessem à sua disposição. Não queria dormir, existia demasiada informação para consumir. De uma forma assustadoramente simples, acabou por passar os dois dias a pouca comida, a muito álcool e muito tabaco. Quando se via mais ébrio, tinha breves momentos de calma, acionando de seguida horas noturnas e madrugadoras de desespero e incompreensão, envolvido descontroladamente em notícias, informação, letras e palavras. Não aguentaria muito mais tempo assim, mas as horas iam passando, e mesmo que lhe parecesse que estava a ser injetado, ao mesmo tempo, com doses animalescas de medo, adrenalina e vontade de dar um tiro na cabeça, a confiança ia aumentando com o andar do relógio e as alterações na luz da rua. Em casa não mantinha qualquer luz acesa, independentemente da hora, não fosse o clarão denunciá-lo. Parvoíce, pensou ele novamente, mas sentia-se mais seguro assim. De que forma um obcecado pode auferir mais controlo da situação, sendo um maníaco e intolerante à incerteza, que construindo à sua volta um falso sentimento de pertença de tudo aquilo que corre em voltas na sua mente? Estava seguro e fechado às suas chaves. A alienação intrínseca à sua forma de ser cerrou-se ainda mais durante as 48 horas de espera, fazendo com que o tempo, as horas, os minutos, fossem apenas medidos pela frequência com que os boletins noticiosos eram atualizados. Nem a discrepância luminosa das dos dois degraus da escada de cada dia o faziam entender até onde o relógio tinha andado. Foi dar por si de olhos completamente vazios a olhar para a TV, cada vez mais desfocada e turva, como se uma nuvem de fumo pouco denso estivesse a alimentar-se de si próprio, mas com um aspeto negro, calmo e morto. Foi o cheiro a queimado que acordou o seu ser mais básico e o fez despejar, sem muito trabalho das ferramentas cognitivas, um garrafão de água para cima da televisão e da pequena chama que lhe criou toda aquela nuvem na vista. Este começo de incêndio ateou uma pequena chama no adormecimento torpe e fê-lo procurar um relógio. Horas. Tempo. Sábado devia estar mesmo à porta. Eram vinte e uma horas e vinte e sete minutos de sexta-feira. Concluiu que dali a um par de horas seria sábado e que sairia de casa pela madrugada, de modo a apanhar as ruas desertas de humanidade, repletas de homens e mulheres. Viu pela penúltima vez as últimas notícias e tomou um banho rápido. Desenrolou a toalha do corpo e deitou-se nu, não sem antes misturar com um copo de Jameson um par de comprimidos sonolentos. O despertador tocou às 4 da manhã como tinha previsto. Vestiu-se e comeu a melhor refeição dos últimos dias, duas tigelas de papas de aveia com cereais e mel, duas bananas e um copo de café. Viu pela última vez as notícias, o único momento em que uma ventania fez levantar a cabeça vazia e esmagada com que fez as últimas ações da noite de sexta-feira. Mas nada, continuava incólume, pelo menos para os media, e isso deveria ser bom, pensava ele. Fumou um cigarro e lembrou-se da situação que o tinha levado ali, aquela cidade, onde era uma cria à procura de um daqueles casos raros em que um ser de uma espécie acolhe um órfão desolado de outra forma e feitio. Já se tinha esquecido de como a amava, de como ela tinha morrido, e de no dia a seguir ao velório ter apanhado o primeiro bilhete para esta cidade. E esta rapidez do mundo provocou-lhe um salto no meio do peito. Parecia tudo tão longe agora, e tão perto no tempo em que tudo aconteceu. Sentia-se sozinho e vivia em esforço. Era-lhe sufocante viver consigo próprio e as borboletas intestinais, o medo e a frustração, que davam as mãos para formar uma barreira humana de ódio por si próprio. Levantou-se e olhou o pau avermelhado, agora seco, rodeado de moscas, como um festim do qual ele tinha sido anfitrião. Pensou que as moscas deveriam estar satisfeitas com a situação e não as incomodou, afinal de contas todos chupamos sangue seco em algum lado para chegar ao dia seguinte. Quatro e quarenta e três da manhã, marcava o relógio de pulso quando fechou a porta atrás de si e encarou a luz da cidade. A primeira vez que respirava e vivia da vitalidade da cidade, sendo responsável pela subtração forçada de um dos milhões de elos vivos da metrópole. Começou a descer a rua. Sentia que todas as pessoas estavam a olhar para si, à procura de algum deslize que o denunciasse. Mesmo com os passeios vazios e as luzes das janelas dos prédios apagadas, sentia o ardor desses olhares reprovadores a marcarem-lhe, a ferver, as costas. Lembrou-se novamente do que o levou à cidade: nada. Exceto a fuga de algo que nem ele sabia definir por palavras, mas que na sua consciência apareceu como um caminho rápido para todo o sítio que não aquele. Redenção? Talvez. Amava-a muito e não gostava de se lembrar dela, e odiava lembrar-se do que não se queria lembrar. Mais um dos motivos pelo qual não gostava de quem era, e vivia agora sozinho, exilado naquela grande manifestação de betão e ferro. A paixão que sentia por ela era desmesurada, sentia que as suas mãos podiam moldar a pele dela, como uma qualquer escultura esquisita que se vê nos museus de arte moderna, e isso era o seu desejo por ela. Por vezes, olhava para ela nua e achava que era irrelevante moldá-la às suas mãos. Ela, para ele, despida, era por si só uma escultura da época clássica, respirando grandeza, fazendo-o suar de admiração. Ele era dela e da arte do corpo dela. Até aquele dia. Agora ela não existia, por mais que lhe agarrasse as mãos e os tornozelos e lhe soprasse aos ouvidos para lhe achincalhar as ideias. Estava morta e enterrada e por isso ele estava ali. E por estar ali tinha o falso gosto de conhecer a sua nova casa. E em toda esta sucessão tranquila de movimentações velozes da vida e da indiferença de uns perante todos, tinha morto um homem. Quando o sol começou a surgir, a cidade começou a salpicar-se de pessoas, as mesmas pessoas que, mesmo estando a dormir, o olhavam. Ou assim pensava ele sem pensar muito e mal. Não sabia bem o que andava a fazer na rua, um teste a si mesmo, ao que tinha feito, ao conseguir ou não sair impune perante os outros, visto que perante si a sentença era já de nascença e perpetuada com o decorrer dos anos e do nojo de viver naquela casca. Os seus olhos serviam apenas para fitar o chão e os pés dos restantes transeuntes citadinos, que iam aumentando no sentido do relógio, permitindo-lhe desviar-se deles. Naquela altura qualquer contacto físico e visual com outro ser humano parecia-lhe fatal. Ao caminhar concentrado nos pés, perdeu toda a noção de onde estava, e seria-lhe difícil, se por acaso o encontrassem na rua e lhe perguntassem onde esteve, ele conseguir responder que caminhos fez ou como eram os sítios da cidade onde tinha estado. Além do chão e dos pés dos habitantes rígidos das paredes cimentadas, os ponteiros eram os únicos amantes das meninas dos seus olhos. Tic Tac Tic Tac. As horas passavam e consumiam-lhe os cigarros, por sorte, ou por negligenciada inteligência, trouxe dois maços. Tic Tac. Eram duas da tarde. Haviam passado muitas horas de tagarelice entre os seus dedos dos pés e o interior dos sapatos; e o exterior dos sapatos e as ruas. Tinha fome. Comprou 7 jornais e sentou-se no restaurante mais próximo. Não sabe o que comeu, carne e batatas, provavelmente. Pediu uma gelatina, um café, e leu todos os jornais, alertando o empregado, de vez em quando, para o facto de o seu copo estar vazio. Deve ter bebido uns cinco copos de whisky. Lembra-se de retribuir a refeição ao restaurante com algum dinheiro, quanto ao certo? Não se recorda. Saiu do restaurante embalado em álcool e voltou ao estado de alerta máximo (e exagerado). Aliás, apenas tinha estes dois estados: ou se sentia morto, ou estava vivo demais para querer viver. Começou a rever as mesmas palavras da noite anterior: Matei, polícia, preso, matei, polícia, preso, matei, polícia, preso. Tic Tac, continuava a fazer o relógio. Tic, Matou, Tac, polícia, tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Sentiu a sua cabeça no alto das nuvens, olhando para os rebaixados como meros seguidores do horário biológico, incapazes de matar alguém, o que ele já tinha feito. E agora, depois de tanto medo, nada tinha acontecido. Tinha um púlpito próprio construído do nada e só com uma madeira que era agora casa e alimento de moscas sedentas de sangue seco. Pela primeira vez na vida era aquilo que sempre aguardou, algo. Sentiu-se tonto e enjoado. Estava feliz por ter morto alguém, era um barquinho de jornal no meio do seu fatal oceano árido. Pensou que era errado sentir-se assim. O álcool arredondava-lhe todos os cantos do mundo que os seus olhos absorviam. Levantou-se, precisava de andar. Andou. Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Tic, Matou, Tac, polícia,tic tic, tic tac, preso, tic tic tic. Estava frenético, até que notou uma maior ausência se sapatos iguais no chão, era o passar das horas, obviamente, e isso acalmou-o. Apenas alguns minutos depois parou para dar um jeito aos sapatos. Aquele cheiro. Voltou a inspirar fundo com medo de levantar a vista, sem perceber o porquê, mas aquele cheiro era-lhe familiar, e naquela cidade não queria que nada tivesse a ver com ele, e o que tinha envolvia morte. E prisão. E polícia. E sangue. Cheirava a pipocas. Levantou a cabeça e lá estavam eles outra vez: Jean Reno de gorro e uma jovem Natalie Portman. Levantou os olhos e leu: “Leon, o Profissional”. Tinha-se encaminhado ao único local da cidade que não queria ver, mas automaticamente pensou que não poderia estar noutro lado. Fechou os olhos por uns segundos e abriu-os subitamente. O clarão de luz aleijou-lhe a vista e estendeu uma breve névoa sobre o panorama, antes de o apresentar ao cenário chocante com que se deparou: tudo estava exatamente disposto da mesma forma aquando da sua última visita àquele cruzamento. Escurecia e deixou-se, apático e estúpido de ignorância, assistir ao espetáculo. O panorama gelou-lhe o sangue, os ossos, os pelos púbicos e o estômago. Sem dar por isso, aliás, sem dar por nada, tinha chegado outra vez a noite, e a velhota estava novamente a fechar o quiosque, o casal de namorados estava à porta do museu, e o homem idoso, que agora usava uma t-shirt de alças e se encontrava, surpreendentemente, tatuado dos ombros às pontas dos dedos, permanecia isolado na pequena bilheteira do antigo cinema. Não tinha nada contra rotinas, tinha a sua e era normal que os seus cúmplices daquela noite também a tivessem. No entanto, não estava à espera de ver que o morto fazia parte da fotografia, ainda para mais se o morto estava afinal vivo, e se encontrava exatamente na esquina onde tinha sido morto. O larápio vivo, claro está. De gelado passou a estar a duas passas do fumo frio da morte, ao ver o homem que tinha assassinado, vivo. Aquele sujo e imundo ladrão a que tinha roubado a respiração e o sangue para alimentar as moscas do seu apartamento. Parou aqui durante uma dúzia de segundos: as moscas. Tinha o quarto cheio delas. Queria voltar para lá e sentir o cheio do sangue seco, da merda que as moscas iam deixando pela casa, e de absorver a sensação de unidade que as moscas alimentadas deixavam no ar. Voltou à esquina do antigo cinema com a avenida principal. Um pequeno homem careca, de pasta e fato, de ar falhado e enfezado, deambulava na sua insignificância na direção do ladrão, que prontamente tratou de o abordar de navalha na mão. Ao ver aquilo, e ainda no choque de se ver indeciso na sua situação, se o que estava a ver era real, pensou em ir salvar o careca e matar, quem sabe, e pela segunda vez, o gatuno. Ao primeiro passo sentiu uma mão a agarrar lhe o cotovelo direito enquanto ouvia um suave, mas firme, “Não”. Virou a cara. Lá estava ela, aquelas pernas merecedoras de punheta atrás de punheta, cobertas com os mesmos curtos calções de ganga. Ergeu ainda mais a cabeça e viu que ela vestia o mesmo blusão preto. Merda, como era bonita, pensou ele. E a rapariga ocupou-lhe todo o pensamento, todo o corpo, toda a tesão que começou a sentir, esquecendo-se completamente do vivo que achava morto e do careca com ar de infeliz que ia salvar. Ela esboçou um sorriso ambíguo quando finalmente os seus olhos se cruzaram, como se o tivesse reconhecido e soubesse dele algo que nem ele próprio conhecia ainda. Ele entrou em pânico, mas foi subitamente embalado pela voz suave que saiu daquela figura de roupa neutra, dado o tempo insosso, que se sentia como da outra vez. “Não te metas, isto é entre eles os dois. Oh ! Estou a ver que também és do que gostas, an? Não percebo qual é a vossa, viram o Fight Club e pronto, querem apanhar nos cornos? É isso ? Não sejas acanhado, fala comigo!”, disse ela, levando depois o cigarro à boca. Naquele momento, ele, impávido e estúpido, não podia morrer porque se sentia morto, não conseguindo pensar. Ela voltou a abrir a boca para deitar fora o fumo e acrescentou, inclinando a cabeça para o sítio onde neste momento apenas se encontrava o ladrão morto ou vivo, falando dele. “Já topei ali a cena do Zed há algum tempo. Até o admiro por juntar tão facilmente aquilo que mais gosta, roubar e apanhar. Não percebo esta merda do masoquismo, apesar de gostar de sair marcada quando arranjo umas fodas. Mas o Zed gosta mesmo de apanhar, lembro-me bem da noite em que quase o mataste, pensámos todos que tinha sido desta, mas ao fim de cinco minutos ele acordou e estava mais feliz que nunca. Não parava de exaltar que tinha sido a maior carga de porrada que tinha apanhado. Até se tinha vindo nas cuecas tal foi a excitação. Passou-se! Começou a dizer que tinha visto o outro lado e merdas assim. Mas pronto, ele é louco e aqui já nos habituámos, não nos faz grande mossa, visto que ele vive para tentar apanhar nos cornos e só rouba de vez em quando. Aquele careca teve azar por ser enfezado, e o Zed também, neste caso, tinha-se vindo todo com três biqueiradas na barriga. Um par de notas de vinte sabe-lhe a pouco. Tu pelos vistos és da laia dele e voltaste para mais. É pena, sabes? Até tens bom aspecto, mas não gosto de gajos que gostam de levar pancada para se esporrarem todos, desculpa lá”. Piscou-lhe o olho e reparou que tinha deixado queimar o cigarro quase até aos dedos, limpou a cinza do casaco e dos calções de ganga, atirou a beata para o chão e pisou. Ele acompanhou esse movimento como se a sua vida dependesse disso. Aquelas pernas. Ela calou-se e encostou novamente uma perna à parede. “Eu…não… sou… desses”, retorquiu ele quase sem se ouvir. A rapariga também não ouviu e esticou o ouvido na direção dele, para ouvir melhor. “Eu não sou desses, pensei que o tinha morto e agora…” Não conseguiu acabar a frase e vieram-lhe a cabeça todos as consequências que aquele não-momento e não-acontecimento lhe tinham causado. Os dois dias fechado em casa. O banquete seco das moscas. A boca dela caiu um bocado, como que a compreender a implosão dos pensamentos dele (está vivo!! gritava ele para ele). “Ele finge que é ladrão, mas também rouba, porque gosta de apanhar porrada?”, cuspiu ele num tom tão infantil que ela não conseguiu conter um riso claramente condescendente antes de montar um “Sim” nos bonitos lábios que tinha na cara redonda de olhos escuros e nariz ligeiramente levantado na direção do seu cabelo, que nem era curto nem comprido, apenas desarrumado. Medianamente desarrumado, no que toca ao tamanho e volume. Ele espreitou mais uma vez para a esquina à procura do homem que pensava ter morto, não o encontrou. Deu meia volta, lançou um “obrigado” à rapariga e andou, ouvindo ao longe um gozão “adeus, volta sempre”. Nas cidades as noites não têm estrelas. Ele andou até casa de cabeça vazia, espelho do oco do chão através dos seus olhos. Entrou em casa e cheirava mal: o pau, o sangue e as moscas. Pegou na madeira e lançou-a janela fora, na esperança que as moscas o seguissem. Teve sorte. Tanto com as moscas como com o facto de não ser assassino. Quase que não se odiou quando adormeceu. Acordou tarde e, ignorando a imundice habitual da sua casa, vestiu-se e almoçou fora. Ah, como o peso que lhe tinha saído dos ombros o tinha tirado da leveza do nada e assentado os seus pés ao chão. Sentia-se bem e aproveitou para ficar numa esplanada a ler Dostoievksi. Noites Brancas, rezava a capa. Fumou cigarro atrás de cigarro e embrenhou-se no livro de enfiada, revendo-se na boca sem fundo e sonhos sem pensar do personagem principal. Escurecia. Levantou-se. Andou até ao antigo cinema e mal dobrou a esquina esboçou um sorriso irónico. A velhota fechava o quiosque de livros. O velho tatuado esperava vender bilhetes. O casal de namorados ia a entrar no museu de arte moderna. O ladrão (vivo!), que afinal sujava os boxers sempre que levava um murro no nariz, ansiava. Ela estava de calções de ganga e blusão preto, e ao vê-lo ela sorriu, mas ele ignorou-a e desceu a rua. O ladrão estava de costas e nem viu de onde vieram os dois pontapés que lhe acertaram nas costelas. Foi ao chão. Esganiçando de dor e prazer, ouviu um “não tens de quê”, enquanto o seu agressor lhe enfiou duas notas de vinte na boca e virou costas. Ela tirou o cigarro da boca quando ele se aproximou dela. “Para que foi isso?”, perguntou-lhe com um sorriso sádico. “Estou contente por ele estar vivo, dei-lhe uma prenda”, respondeu ele encolhendo os ombros. Ela riu histericamente. Ele sentiu calor no peito.
“Alguma vez viste o Leon?”
“Não”, respondeu ela.
“Vamos, eu pago.”
Falaram com o velho de braços tatuados e entraram no velho cinema. Na esquina, com duas notas de vinte na boca, Zed gritava sons de prazer e quase morte, enquanto propositadamente, com as mãos, fazia roçar um no outro os dois ossos em que se tinha transformado uma das suas costelas. A dor era agonizante.