segunda-feira, junho 24, 2013

Estória, parte 1

“Podia ser mais grave.
Ao fim ao cabo apenas não sabia onde estava.
Passei a mão uma pela outra, pelo peito e pela cara. Procurei feridas, olhei-me na primeira janela que encontrei para semicerrar um reflexo encadeado pela luz forte do sol. Não, também não tinha grandes feridas na cara. Pareceu-me na altura que permanecia fisicamente normal, só vi a marca no pescoço algumas horas mais tarde. Já chegarei a esse momento. Aliás, não é importante o quando, somente que, a dada altura, dei pelo desenho preto um pouco abaixo e atrás do lobo da orelha.
Visto que estou a escrever em pedaços velhos de roupa, guardanapos e pequenas folhas que vou guardando, não será plausível que alguém chegue a saber de mim, desta história, de como vim parar a este cubículo de onde não saio faz já algum tempo.
Ao 25.º dia deixei de contar, fartei-me de riscar os braços com o único pedaço de vidro que uso para ver o adiantamento das mudanças da minha cara fustigada, e do desenho, da mancha que vai alastrando pescoço fora. Além disso, e como para a maioria das pessoas, presumo eu, sangrar de cortes autoinfligidos nos braços não é exatamente a sensação mais ejaculatória do ser (da maioria).”

Isto fui eu que escrevi, dividido em retalhos como já expliquei. Isto, que eu escrevi, estava transcrito para um pedaço de papel, por ela, à mão.  Encontrei depois todos os pedacinhos onde tinha escrito algo. Ainda hoje não me surpreende que ela tenho conseguido montar o puzzle das minhas memórias curtas, mesmo em pedaços de roupa sem cor, sem tinta, sem nada. Ela conhecia-me, e pelos vistos ficou a conhecer-me mesmo depois de eu partir. A mentira não obviou o que já era por mais real, mais que o ar. Erámos mais que o sol. Mais verdadeiros que a própria verdade.
O que se segue, é exatamente o papel que encontrei e tirei das suas mão frias, hirtas e sem vida. O que se segue cospe claramente o porquê de estar a contar uma história: as histórias por acabar…

“Não é pela tentativa de utilização de mais e mais letras que conseguirei arredondar os bicos desta história. Da minha história. Assim ela não aconteceu, pois o mais correto será que a conte tal qual sucedeu o meu desaparecimento. Sentir-me especial seria um erro grosseiro e crasso, um tapar da noção, a retalhos desde sempre, que a morte é igual à vida.
E embora seja muito mais fácil dizer isto do sítio onde me encontro agora, a verdade é que os que ficam choram-me, ele incluído, claro (por mais que vá encontrando outras mulheres que só consegue magoar), e isso custa-me. Mentiria também se dissesse que não me estremece o estômago saber o que ele faz, o abandono que ele deu a si mesmo.
Habituei-me, porque não escolhi saber. Sei que ele partiu no primeiro comboio a seguir ao enterro. Deu-me como morta, porque assim lhe disseram, porque foi assim que desapareci.
Iniciei este relato com a promessa de não enrolar o que à partida me parece fácil e limpo de contar. Assim o tentarei. Hoje a Senhora D. fez-me pizza para o almoço e em vez da televisão, os meus olhos alcançavam, janela fora, o antigo cinema. Tendo os olhos e a cabeça em recordações, nem consigo sentir o sabor da refeição.
Amava-o  (amo-o) tanto que nem conseguia sabore...”

O coração parou de bater antes que ela pudesse acabar a frase, a história, antes que se pudesse despojar um pouco da dor dos dois. A doença já a tinha levado antes, mas sem a matar. A doença levou-a quando eu a encontrei, antes que lhe pudesse falar, tocar, aperceber-me do seu reaparecimento. A doença levou-a depois de nos olharmos, e esse olhar brilhou mais que o sol, foi mais verdadeiro que a verdade, foi um despojar da dor dos dois, um obviar (tantas vezes usámos esta palavra entre nós, mas nunca através de nós) de que não iriamos efetivamente estar os dois, vivos, ao mesmo tempo, no mesmo espaço. Nem mesmo depois de todas as vezes que voltámos dos mortos.
A última coisa que os olhos dela viram foi o meu braço cheio de cortes, fundos e feios, tal como funda e feia ficou a cara dela quando perdeu a expressão de beldade que acarretou tantos anos.
Após o tempo passou consigo resumi-lo assim, despaixonadamente curto, mas assim é a verdade. Tantas voltas que demos a pensar que um de nós estava morto, e por isso, já não havia sítio para ficar dentro de nós próprios.

O resumo foi o que já vos mostrei, e para mim o mais importante, porque será o único dos momentos em que posso falar dum tempo presente dum passado que aconteceu mesmo. E  é o mais importante porque será o único aglomerado de palavras que descrevem um momento em que estivemos perto, e em que portanto o mundo todo rodou e caiu pelo universo fora, sem gravidade, e fiquei só eu e ela a planar. O reencontro de segundos um pouco antes de prestar contas a Caronte.

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